Opinião
Letras | g r e g ó r i o d u v i v i e r - Ligue os pontos
Poemas de amor e big bang
À hora que escrevo este texto, lembro que é dia de São Valentim, a dois dias do Carnaval de 2021 e sem Carnaval (mas com sotaque brasileiro “tem sempre”), por isso, adequado ao momento.
Falar-se de amor na espuma dos dias, vindo do outro lado do Atlântico e naquele jeito balançado que só no Brasil se consegue, já nos acalma os temores que advêm destes tempos estranhos e nos banham suavemente a epiderme.
Mas Gregório Duvivier vai mais longe.
Um dos maiores responsáveis pelo sucesso do canal Porta dos Fundos, o actor tem revelado grande habilidade em transformar a tragicomédia da vida contemporânea numa provocadora onda de trejeitos e falta de jeito que misturam absurdo e realidade.
Além da prosa humorística, o tratamento lúdico das palavras pode render poesia de qualidade.
Acaba por fazer da superfície a porta de entrada para os sentimentos quase pueris ou momentos insignificantes do quotidiano em pequenas odes de amor.
“Imagine um réveillon fora
de época é você uma terça-feira de Carnaval
em plena sexta-feira da paixão e minha
paixão é um sábado que não termina nunca.”
Quase se assume um coach do amor, fazendo em simultâneo pouco de si próprio e até da forma como podia melhor se expressar. Indaga o mistério da criação, as palavras e suas relações inesperadas, a experiência do amor vivido enfim como adulto, a transmutação de tudo: a constelação de poemas de Ligue os pontos revela uma dicção marcadamente individual, que seduz e extrai do quotidiano imagens de desconcertante beleza.
“A Avenida Niemeyer
se esgueira
na beira do abismo atlântico [...]
mergulhando
de barriga
no oceano
como
um
martim-pescador
obeso.”
A comédia que domina também lhe traz compasso para fazer poesia descomprometida. Ri de si próprio e vai atrás do prejuízo, seja na secção dos lacticínios ou outra secção/situação qualquer. Tudo é de simples utilização e daí ao mais profundo sentimento existencialista e emocional.
“Querer tudo é não querer nada [...]
se o leite desnatado por acaso caísse
da sua mão no chão da seção de laticínios
bastava para eu enxugar o piso encharcado
de batavo e perguntar seu nome e fazer
alguma piada envolvendo a expressão chorar
pelo leite derramado e nós dois teríamos
uma longa-vida eu e você.”
No fundo, tudo o que pertence à superfície afinal não é banal. Afinal tudo fora a viagem de crescimento emocional onde se chega à terra-pele de Clarice - Clarice Falcão namorada de então, cantora, atriz, , realizadora brasileira, etc. - e se encontra nas suas costas como no céu onde os signos traçam a eternidade, o convite a que ela também ligue os pontos e o descubra… ou ele a ela?
“Enquanto você dormia liguei
os pontos sardentos das suas
costas na esperança de [...]
algum tesouro
submerso formasse quem sabe
alguma constelação ruiva oculta
na epiderme e me deparei
com o contorno de um polígono
arbitrário que não me fornecia
metáforas não apontava direções
simplesmente dizia: você está aqui.”