Opinião

Letras | Isabel Allende (2007), A soma dos dias OU a caixa da memória

27 fev 2021 20:00

Revelação da literatura latino-americana na década de 80 do século passado

Isabel Allende (n. 1942, no Peru) é uma escritora chilena e norte-americana, revelação da literatura latino-americana na década de 80 do século passado, desde A Casa dos Espíritos (1982), que em 1993 ficaria registada, cinematograficamente, no filme imortalizado, entre outros, por Jeremy Irons, Meryl Streep e Antonio Banderas, com grande parte das rodagens em Portugal. A lista dos romances seguintes é grande – destaco aleatória e subjetivamente De amor e sombra (1984); O plano infinito (1991); Retrato a sépia (2000); Inês da minha Alma (2006); O amante japonês (2015); As mulheres da minha alma (2020) – com incursões na literatura juvenil (em 2012 recebeu o Prémio Hans Christian Andersen pela trilogia As Memórias da Águia e do Jaguar), no teatro e em antologias de contos. Em 2010 foi-lhe atribuído o Prémio Nacional de Literatura do Chile.

A soma dos dias, de 2007, com publicação em português na Porto editora em 2013, é uma entrada quase vertiginosa na escrita diarística e biográfica da sua vida familiar. Com a morte da sua filha Paula – sofrimento catarticamente partilhado em Cartas a Paula (1995) – quase tudo iria mudar na vida desta escritora, sobretudo a perspetiva com que passa a encarar os revezes da sorte e da vida. Neste livro, é disso que se trata: continuar a seguir em frente, com muita autoironia e capacidade crítica, quando todos os caminhos parecem estar obstruídos. O leitor intrínseco e ideal é Paula, e as balizas temporais vão desde 1993, data da sua morte, até 2006; o elenco resume-se à família-tribo, com exceção dos que não quiseram ver-se expostos. A morte da filha deixa Isabel Allende fechada em si e obcecada com o ecrã branco, com a sua imaginação bloqueada:

[…] Não tinha vontade de ver ninguém e a ideia de uma digressão para promover o livro [O plano infinito] deixava-me doente. Estava doente de sofrimento, obcecada com o que poderia ter feito para te salvar e não fiz. […] Fechava-me no quarto onde passaste os últimos dias, mas nem sequer nesse lugar sagrado encontrava um pouco de paz. Teriam de passar muitos anos até que te convertesses numa amiga suave e constante. Nessa altura sentia a tua ausência como uma dor aguda, uma lança no peito, que por vezes me deixava de rastos. […] (opus cit., p. 27)

Embora o registo seja o do diário ou das epístolas a Paula, nenhuma delas é claramente datada, a não ser pelas peripécias que os membros da família reconhecem e estão intrinsecamente ligadas à vida social e literária da autora.

O livro aparece dividido em duas grandes partes com 29 reflexões autónomas na primeira e 40 na segunda. É uma amálgama de pensamentos próprios de Isabel Allende, no outono da sua vida, sobre o papel nuclear da (sua) família e as transformações constantes e metamorfoses abissais que tem recebido, o mundo em sofrimento e o empenhamento necessário para ‘fazer a diferença’, a necessidade da compaixão para iluminar a humanidade. E, claro, a trave espiritual que sempre a habitou e que, com laivos de ironia, não esconde, aceitando a rejeição de todos os outros à sua volta.

Chegar ao fim do caminho, quando se perdeu a ‘arrogante certeza da juventude’ é continuar a abrir a caixa da memória e permitir ao leitor rever-se / consolar-se com o inesperado dos universos semelhantes / paralelos / distantes. Porém reveladores da surpresa de estar vivo…

Comecei estas páginas no ano de 2006. Com o tempo, o meu ritual de 8 de janeiro complicou-se, porque já não tenho a arrogante certeza da juventude. Lançar-me noutro livro é um assunto tão grave como apaixonar-me, um impulso tresloucado que exige uma dedicação fanática. A cada ano que passa, como perante um novo amor, pergunto a mim mesma se terei forças para o escrever e se isso valerá a pena: há demasiadas páginas inúteis, demasiados amores frustrados. Antigamente embrenhava-me na escrita – e no amor – com a temeridade de quem ignora os riscos, mas agora são precisas várias semanas até perder o receio do ecrã em branco do computador. Que tipo de livro será? Conseguirei chegar ao fim? […] (opus cit., p. 376)

Artigo escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990