Opinião
Letras | Isabela Figueiredo (2022), Um cão no meio do caminho OU o Redentor na caixa de Pandora...
Este novo romance gira à volta da solidão, um dos grandes males da vida moderna
Isabela Figueiredo nasceu em 1963, em Lourenço Marques, Moçambique, e veio para Portugal em 1975 como retornada. Foi viver com a avó, ficando separada dos seus pais, que permaneceram em Moçambique, durante 10 anos. Licenciada em Línguas e Literaturas Lusófonas pela Un. Nova de Lisboa, com especialização em Estudos de Género pela Un. Aberta de Lisboa, publicou os primeiros textos em 1983 no DN Jovem, suplemento já extinto do Diário de Notícias.
Em 1988 obteve um primeiro prémio na ‘Mostra Portuguesa de Artes e Ideias’ com a obra publicada sob o nome de Isabel Almeida Santos: Conto é Como Quem Diz. Trabalhou como jornalista no Diário de Notícias entre 1989 e 1994 e como professora de Ensino Médio na Margem Sul de Lisboa entre 1985 e 2014.
Em 2009, publicou a obra autobiográfica Caderno de Memórias Coloniais, eleita em 2010 como uma das obras mais relevantes da década pela escritora Maria da Conceição Caleiro e pelo ensaísta Gustavo Rubim no especial publicado pela revista de cultura Ípsilon (suplemento de artes do jornal Público). O romance A Gorda (2016) foi considerado um dos dez melhores livros de 2016 pela revista online Espalha-Factos e venceu o Prémio Literário Urbano Tavares Rodrigues de 2017.
Este novo romance – Um cão no meio do caminho – gira à volta da solidão, um dos grandes males da vida moderna, através da história de um homem, José Viriato, que se cruza com a sua vizinha misteriosa, Beatriz, e se juntam por um acaso. Em ambos, a solidão responde à agressão dos violentos acidentes da vida. José é o narrador na primeira pessoa, objetivo e distanciado de si mesmo, disciplinado e rigoroso, meticuloso e compulsivo com as suas obsessões, capaz de se retratar como se se visse ao longe (ou no divã da psicanálise…):
“A minha atividade é andar ao lixo. Dá perfeitamente para me manter. As pessoas deitam tudo fora. Tenho muito por onde escolher. Vivo com pouco. Tenho hábitos frugais. Há quem precise de sinais exteriores de riqueza: casas de luxo, carros, roupa. Eu não. Preciso de umas botas para o inverno e de um par de sapatos leves para o verão.
Costumo dar a minha volta aos contentores entre as duas e as cinco da manhã, o mais tardar. Não uso relógio. Toda a cidade é um relógio. […]
Ao chegar à porta do meu prédio com os sacos, costumava olhar para a janela da minha vizinha do lado, no rés-do-chão. Procurava o vulto que costumava espiar-me. Mudara-se um ano antes. A empresa de mudanças descarregou muitas caixas e vi-a dar ordens secas aos homens.” (opus cit., pp. 34-35)
Beatriz fica adoentada, José leva-lhe víveres e acaba por ouvir a estória dela, ‘morta-viva’ de um amor de juventude que a reduziu ao nada e à acumulação despropositada de todos (e ínfimos…) os objetos do passado, interpretados como sinais hipotéticos de uma saída/solução para o seu sofrimento/desamor. Literalmente, o apartamento de Beatriz está repleto dos caixotes que contêm esse passado a que ela se agarra com desespero e do qual não quer separar-se. José quer soltar-se do passado que o atormenta (a morte da mãe, alcoolizada, depois do abandono do pai, quando tinha 12 anos) e fica a viver com a avó Josefa, em Mafra, a quem sempre promete visitar, mas vai adiando a promessa. Ora o acaso será a viagem que José e Beatriz fazem juntos até casa da avó e como essa decisão acaba por mudar a vida de todos:
“A grande novidade de 2019 tinha sido a mudança da minha vizinha para Mafra. Vivia com a minha avó e dela cuidava, desde que a tínhamos ido visitar em janeiro. Era mais do que cuidar. Gostavam uma da outra. Entendiam-se no pragmatismo que partilhavam. E eu votara à Margem Sul.” (p. 277)
O pânico de cães de Beatriz termina quando um cão vadio a segue e é adotado pela avó, batizado com o nome de Redentor: metáfora do velhinho-cão Cristo que acompanhou o neto na juventude… Um cão no meio do nosso caminho ajuda-nos sempre a selar a caixa do passado e caminhar para o futuro (“[…] sorri, e pensei que ninguém entra na nossa vida por acaso.”, p. 292).
Inquietante, a escrita de Isabela Figueiredo continua no seu melhor.