Opinião
Letras | João Ricardo Pedro (2012) O teu rosto será o último, OU a arte subliminar da dor
Encontrar uma característica comum a toda a ficção narrativa literária atual pode ser uma procura vã. No entanto, o ‘desconforto’ parece ser uma linha inevitável com que o leitor acabará por se confrontar
Temos uma nova geração de escritores, surgidos do anonimato pela iluminação de uma consagração rápida através do foco de prémios literários, mais ou menos sonantes, e que muito têm contribuído para alargar o espectro do panorama cultural português. Refiro-me ao prémio Leya, neste caso concreto a João Ricardo Pedro, nascido em 1974 e engenheiro eletrotécnico de profissão, com o romance O teu rosto será o último, ganhador já há uma década, em 2011.
A primeira edição apareceu em 2012, acompanhada de tradução para várias línguas (10, entre as quais o chinês e o árabe – o que mostra o valor e o peso da ‘máquina’ comercial nas conexões da globalização artística). Em 2016 publicou novo romance, Um postal de Detroit, e continuará, seguramente, a fazê-lo.
Encontrar uma característica comum a toda a ficção narrativa literária atual pode ser uma procura vã. No entanto, o ‘desconforto’ parece ser uma linha inevitável com que o leitor acabará por se confrontar. E não me refiro apenas às temáticas abordadas, mas igualmente à estrutura das obras, cuja fragmentação pode ser um desafio para uma ligação de pormenores, atenção a sinais e indícios, e a capacidade de estabelecer redes interpretativas.
No caso concreto de O teu rosto será o último, o romance é constituído por sete partes, aparentemente autónomas, que têm como ponto de partida a Revolução de 1974. Porém, o leitor deve ativar o seu princípio de ‘estabelecer pontes’ através dos indícios que são deixados soltos em cada uma das partes, se quiser construir a história de uma família marcada pelos longos anos de ditadura e repressão política, pela guerra colonial, pelo encontro da arte como modo de sublimar os sofrimentos ou compreender ligações silenciosas.
Assim, a personagem Duarte acaba por ganhar um papel central; será sob o seu olhar infantil que as memórias alheias, ora traumáticas, ora obscuras, se enredam numa trama que esconde um segredo (como o iceberg do desenho oferecido a Duarte pelo seu amigo Índio). “[…] Duarte soube da morte do Índio pela mãe. A mãe perguntou-lhe, desdobrando-se em cautelas como se caminhasse sobre um terreno pantanoso: ‘Aquele teu amigo que te ofereceu o desenho que tens pendurado no quarto, não era o Índio?’ […] ‘Porquê?’, perguntou a mãe, e Duarte encolheu os ombros como se quisesse dar o assunto por encerrado. Então, a mãe aproximou-se e disse: ‘Morreu. Parece que o encontraram morto esta manhã.’ […]” (opus cit., p. 87)
Na 4.ª parte, quando Duarte, por ter abandonado a música e o seu dom interpretativo dos grandes românticos, consulta um médico, que usa no dedo mindinho um anel de ouro com a gravação das letras HC, não correspondentes ao seu nome, a ligação só se vem a estabelecer na 6.ª parte, com o encontro entre um professor de piano, visita ritual do Museu de História da Arte, em Viena, onde se apaixona por uma pintora misteriosa que aí encontra a pintar uma tela sobre um pormenor de um quadro de Bruegel. O quadro é oferecido a Duarte pelo professor, no dia em que a sua mãe morre de cancro. Porém, só na 7.ª parte, o leitor encontra a rede: a pintora, de nome Hannah ou Clawdia, viveu até à morte no quarto n.º 302, do hotel em Buenos Aires, do amigo do avô Augusto Mendes, Policarpo, a olhar para o quadro da mulher amputada de uma perna, tal como a personagem – revelação presente na única das suas cartas (truncada, pois lhe faltam as últimas páginas) que o avô nunca tinha lido a Duarte…
O diálogo final, entre Luísa e Duarte, não fecha; antes abre uma ampla janela sobre o modo como a arte e a dor se entrecruzam perigosamente, como um iceberg oculto e poderoso.