Opinião

Letras | João Tordo (2022), Naufrágio OU o delírio cruel da vida-arte…

23 jul 2022 20:00

Jaime Toledo é o narrador ficcional (a arte sem encomenda?), o ‘mulherengo’ escritor paciente zero de denúncias de assédio na rede. O impacto da descoberta do cancro leva-o a comprar um barco (Narcisse, de seu nome) e a revolução do #MeToo deixa-o sem proventos dos direitos de autor

João Tordo (n. 1975) é, atualmente, um dos escritores de língua portuguesa com mais projeção nacional e internacional. Já aqui discorri sobre os prémios e as traduções várias, e até sobre a entrada no género policial, que considerei ‘literário tout court’. Não julgo necessário reiterar; sobretudo porque com Naufrágio (2022) o questionamento pode bem tornar-se de uma outra ordem: como está o social a alterar (alucinar?) e a fazer naufragar o paradigma de uma literatura (/arte) assética, acorrentando-o às teias de uma ‘rede social’ que arrasta mais do que ancora. Os mapas concetuais estão a mudar, tal como os mapas territoriais…

Constituído por 5 grandes partes (a lembrar os andamentos de uma partitura musical) – O Deserto (pp. 17-67); Alice (pp. 71-94); O Mar (pp. 97-170); A Terra (pp. 173-278); O Céu (pp. 281- 317) – o leitor vai encontrar, maioritariamente, um narrador autobiográfico com autorreflexões desordenadas sobre acontecimentos disruptivos da sua vida íntima (o cancro, diagnosticado em 2015) e as (inaugurais) acusações de assédio a várias mulheres (#MeToo, a partir de dezembro 2017 até 2018), que transformam completamente toda a sua vida e a escrita: “Faz agora mais de dez anos que não escrevo.” (p. 17 – é a frase de abertura deste romance).

Sendo o autor, João Tordo, também escritor (e filósofo…), o aviso inicial, ao negar que as obras de ficção não manifestam ou defendem opinião do autor acerca dos temas abordados, talvez seja o primeiro indício de uma mutação filosófica, (des)alinhada (?) com o poder das redes sociais, capaz de fazer a vida e a arte enovelarem-se até à perdição de qualquer amarra/fronteira conhecida até aos nossos dias.

A epígrafe, na abertura do romance, é do aclamado escritor francês Emmanuel Carrère, do livro D’ autres viés que la mienne, escrito sob encomenda, e que parte do testemunho de dois acontecimentos reais-mediáticos: a morte de uma criança pelos seus pais e uma jovem mulher pelos seus filhos e marido. Porém, o excerto escolhido tem a ver com sonhos (delírios?) de glória e sofrimentos causados aos outros, por insatisfação e inquietação pessoal.

Em Naufrágio, Jaime Toledo é o narrador ficcional (a arte sem encomenda?), o ‘mulherengo’ escritor-paciente zero de denúncias de assédio na rede. O impacto da descoberta do cancro leva-o a comprar um barco (Narcisse, de seu nome) e a revolução do #MeToo deixa-o sem proventos dos direitos de autor: os livros são retirados das livrarias pela editora, que faz um ‘lamento coletivo’, com uma frase final de suposta autoria de Toledo, e com a qual em nada se revê.

O amigo padre Romano aconselha-o a rezar, mas O Deserto tem que ser atravessado: “[…] Infelizmente, os meus sentimentos eram contraditórios, abdicar da vida de escritor havia sido difícil, mas possível; o cancro devastara-me o corpo e a mente, contudo, ultrapassara-o. Aquilo, no entanto, era de outra ordem. As acusações mexiam com o meu carácter […]” (pp.66-67).

Embora o número das mulheres queixosas vá aumentando (5), só Alice vai merecer um tratamento específico por um narrador omnisciente, cuja perspetiva é a da personagem, mas bem que pode resultar da ‘outra ordem’ encontrada por Toledo n’O Céu ou n’A Terra, quando Alice (e Romano) comparece com o vaso de buganvília (e a figueira que há de nascer, no sonho/delírio final).

Rafael, o pintor, também acusado na sequência, estabelece a ligação com o quadro com a piscina de rosas e ‘David e Golias’, de Caravaggio, ambos com valor heurístico e simbólico no processo de transformação de Toledo.

A partir de 2019, Toledo abandona o seu apartamento e vive no barco parado na doca de S. Amaro (O Mar), onde recebe visitas e notícias inesperadas, enquanto pondera a ida a um programa de televisão onde será entrevistado (para se ‘retratar’? para receber os honorários que lhe permitirão continuar vivo?).

Na última parte, temos a fuga precipitada da entrevista e o zarpar do barco (agora já com motor) para alto mar e, só então, nas finais duas páginas, o narrador de 3.ª pessoa substitui Toledo e fere o leitor com as suspeitas do delírio da vida-arte: “[…] Se este fosse o livro que nostr’uomo deixou por escrever há tantos anos, talvez fosse justo terminar assim, com um homem que segura a sua própria cabeça decepada como no quadro de Caravaggio, um náufrago eternamente perdido que olha para o céu que se faz noite e, em vez da Lua e das estrelas, vê uma piscina de rosas e sorri, porque acabou de descobrir que, ao fantasiar o seu perdão, fantasiou também a sua culpa, acabou de perceber que vimos a este mundo para errar, para errar uma e outra vez, e, por fim, quando julgávamos não poder mais, erramos novamente, é esta a história que lhe falta contar ao miúdo francês que não sabe agora se algum dia ali esteve, uma história à imagem e semelhança da sua vida, escrita naquele espaço vazio onde, um dia destes, nascerá uma figueira.” (opus cit., pp. 316-317)