Opinião
Letras | Os Naufrágios de Camões, de Mário Cláudio (2017)
Uma obra algo provocatória e de grande ironia – como o são todas as deste grande autor – que tende a desconstruir a imagem heroica de Camões, a qual foi construída ao longo dos anos, nomeadamente nos tempos do Estado Novo
Nos 500 anos do poeta, atropelam-se as edições e reedições de biografias, estudos, artigos, antologias (re)comentadas. Que mais poderá haver para descobrir ou inventar sobre Camões depois dos aprofundados estudos de Sena, de Aguiar e Silva, de Eduardo Lourenço, de Hélder Macedo? (nomeando apenas alguns, poucos, camonistas.)
E na ficção? Não há como ignorar Os Naufrágios de Camões, romance do distinto e incansável escritor Mário Cláudio, nascido com o nome de Rui Manuel, no Porto, em 1941, onde vive apaixonado pela sua cidade.
Trata-se de uma obra algo provocatória e de grande ironia – como o são todas as deste grande autor – que tende a desconstruir a imagem heroica de Camões e da sua obra, a qual foi construída ao longo dos anos, nomeadamente nos tempos do Estado Novo.
Convida-nos o autor/narrador – o sempre “autor destas linhas” – a aceitar a hipótese de que Camões não terá sobrevivido ao naufrágio no delta Mekong e que a parte final de Os Lusíadas não terá sido escrita por ele – teoria que lhe foi aventada por Timothy Rassmunsen, neto de Tiago Veiga, personagem do seu romance de 2011. Teoria estranha que o autor/narrador não deixa de perseguir ao longo da obra.
O romance desenvolve-se em três partes regressivas no tempo: a primeira, Timothy, linguista de Chicago, também na senda de Aquilino Ribeiro sobre a rasura da parte final de Os Lusíadas pelo frade censor da epopeia, acredita que esta foi reescrita por um tal Bartolomeu Castro, capitão da nau anual da China onde se dá o naufrágio. Segue, desenfreado, o périplo do Poeta em busca de algo que prove a sua tese. Sem o alcançar e quase louco, acaba por suicidar-se.
Mas o autor/narrador deseja muito desatar este nó e na segunda parte do romance vai dar voz a Richard Francis Burton, linguista e militar vitoriano, tradutor para inglês da obra do poeta e tal como Timothy um apaixonado por Camões, continuando a busca pela verdade sobre a escrita da epopeia.
Também Richard morre sem dar solução ao caso e inicia-se a terceira parte, Ruy (nome “corrompido” do autor/narrador), embarcado como escrivão de bordo na São Lourenço, a nau anual da China em que segue Camões com os seus manuscritos, em prisão de Macau para Goa. Assistimos, pela voz de Ruy, ao naufrágio, à usurpação dos manuscritos pelo capitão da nau, à fragilidade e desaparecimento do poeta, ao regresso a Lisboa – a Lisboa dos mercadores que lhe “aparecia como um bandulho”, em que ninguém se lembrava já de Camões – onde o capitão, com grande empáfia, se fez passar pelo poeta. Mas, hélas! deu-se o desastre de Alcácer e transformou-se “a Cidade num fantasma de si”. Ruy dá conta do aparecimento pelas ruas de uma figura muito frágil, um “frágil Tirésias” que vai definhando … Quem se finava? O vero Camões ou o falso? O enigma subsiste…
Serpenteando entre a fantasia literária e a História, apoiando-se numa vasta investigação, a leitura torna-se viva e divertida. E com aquele profundo domínio da nossa Língua que carateriza a escrita deste erudito autor.