Opinião
Letras | Outras narrativas prodigiosas sobre a Revolução
Uma revolução não acontece do nada: há todo um feixe de causas mais ou menos dolorosas que a provoca e toda uma catadupa de consequências tantas vezes tão triste e irreversivelmente inesperadas que lhe sobrevêm
Tão boa literatura há para (re)ler sobre o 25 de Abril, 50 anos passados! De referir a “trilogia” que, em inícios de 80, lançou a grande escritora Lídia Jorge, que se iniciou com O Dia dos Prodígios (1980) sob os bons auspícios do também grande escritor Vergílio Ferreira.
(Re)ver e (re)ler o 25 de Abril não pode passar apenas por relembrar aquele breve tempo mágico que se viveu desde a arriscada aventura da noite de 24 para 25 até à loucura esfuziante do 1º de Maio.
Há todo um mundo de vivências e circunstâncias históricas experimentadas por este mesmo povo – que viveu esses prodigiosos dias de Abril – nas décadas anteriores e nos tempos posteriores que, por um lado, forçosamente condicionaram, e por outro, decorreram do golpe.
Uma revolução não acontece do nada: há todo um feixe de causas mais ou menos dolorosas que a provoca e toda uma catadupa de consequências tantas vezes tão triste e irreversivelmente inesperadas que lhe sobrevêm. São essas realidades vivenciais, esses contextos sociais, essas demandas políticas que a História demora em registar construindo, por isso, ‘verdades históricas’ pouco verídicas (passe o paradoxo) que devemos ir beber à literatura.
É o caso dos três primeiros romances que a jovem escritora lança quase rente à Revolução no seu todo pré e pós histórico: O Dia dos Prodígios, terminado em 1978 mas publicado em 1980; O Cais das Merendas, (1982); e Notícia da Cidade Silvestre, (1984) que, de forma completamente inovadora em termos de narratividade, de pensamento, de utilização da linguagem, de apresentação das personagens e dos locais escolhidos para o desenrolar da ação, narram os acontecimentos como que por dentro, já que todo o decurso pré e pós revolucionário é apresentado numa espécie de monólogo interior não só das personagens mas da própria narrativa (como se isso fosse aceite pela teoria da literatura…).
O tempo histórico-cronológico quase coincide nos três romances, mas os espaços geográficos diferem oferecendo perspetivas socioculturais de como se entendeu a mudança de regime para a promessa da democracia: o primeiro retrata a realidade de um Portugal profundo na aldeia isolada de Vilamaninhos, no interior do Algarve rural, onde se vive um tal atraso que nem acreditam que a Revolução aconteceu. O Cais das Merendas representa o desejo de ascensão social, a sedução pela chegada do turismo ao litoral algarvio que leva os rurais de Redonda, povoado mais próximo do mar, a irem trabalhar para o Hotel Alguergue, na praia das Devícias. (Atente-se na ambiguidade dos topónimos). É um Algarve em mudança onde, pela ocupação estrangeira, aquele povo rural arcaico se vai “aculturando”, não sem algum temor. Na mesma linha de “ficção historiográfica”, Notícia da Cidade Silvestre situa-se na periferia de Lisboa e relata igualmente a crise económica e de valores vividos no país nos primeiros anos após a Revolução.
Propõe-nos esta “trilogia” a leitura de situações específicas dos tempos da Revolução que a História ignora, mostradas pelos olhos dos mais sofredores, dos mais marginalizados.