Opinião

Letras | Querido Diário

21 nov 2025 08:53

Carregado de ironia e mordacidade, o livro de Rubem é mais que um diário de divertidas aventuras de um Casanova, traz também hábitos, costumes e peculiares aspectos da oralidade brasileira

Dizem os entendidos que escrever algo todos os dias tem benefícios para a saúde mental. Materializar no papel pensamentos, sentimentos, devaneios… ajuda a libertar peso das nossas mentes inquietas.

O acto de escrever um diário tem agora uma palavra internacional: o journaling - muito abordado no mindfulness; os influencers adoram. Mas, independentemente das palavrinhas da moda, para além dos reconhecidos efeitos terapêuticos, o uso de diários pessoais potencia a construção da história, através do registo de memórias, permitindo aos investigadores a compreensão da sociedade pela perspectiva individual.

Reler os diários que escrevemos na juventude pode fomentar um reencontro fascinante (ou embaraçoso) com o passado. As preocupações, as paixões não correspondidas, os corações partidos confessavam-se em bonitos cadernos, muitas vezes fechados a cadeado.

Nos diários podem eternizar-se obras literárias, se escritas por privilegiados detentores de um sistema venoso artístico.

Rubem Fonseca, premiadíssimo escritor brasileiro, elegeu o modelo de escrita de diário para o seu Diário de um fescenino, publicado em 2003, no mesmo ano em que foi distinguido com o Prémio Camões. O autor, formado em Direito e com experiência como comissário da polícia civil, conheceu bem as entranhas do crime e da violência, mundo que influencia a sua obra e as suas personagens.

Rufus é o protagonista do livro: um escritor de sucesso que decide escrever um diário onde regista as suas aventuras amorosas com diversas mulheres; as suas obscenidades. É este homem que diz: “parafraseando aquela música pop, as mulheres sempre me recebem de braços e pernas abertos”. O fescenino vai manter relações afectivas com duas mulheres ao mesmo tempo: mãe e filha. A descoberta do amor simultâneo, por uma delas, é o caminho para o levar à prisão, acusado por crimes que não cometeu, mas cumprindo a pena da vingança feminina.

Carregado de ironia e mordacidade, o livro de Rubem é mais que um diário de divertidas aventuras de um Casanova, traz também hábitos, costumes e peculiares aspectos da oralidade brasileira.

A obra iterária de Rubem Fonseca foi classificada como brutalista, pela forma direta como explora a violência urbana e a complexidade do ser humano, integrando personagens muitas vezes marginalizadas pela sociedade. O autor faleceu em 2020, aos 94 anos, deixando dezenas de romances e de contos.