Opinião

Letras | Se os gatos desaparecessem do mundo

18 out 2024 08:18

De leitura aparentemente leve, este livro propõe-nos profundas reflexões sobre a vida e a morte, sobre as escolhas que supostamente fazemos, sobre os laços que criamos para iludir a solidão

Há temas na literatura e no cinema – que é uma outra forma de leitura – que, por defesa, evito. São os que falam da 2ª Guerra Mundial, de crianças ou de animais. O sofrimento dos indefesos, nem que seja apresentado da forma mais terna, mais tocante, torna-se-me insuportável. Nunca consegui ler o Diário de Anne Frank e aquele filme italiano A Vida é Bela, de 1998, que toda a gente achou maravilhoso, doeu-me até à alma; (já para não dizer que, aí pelos meus quatro anos, a minha mãe teve de sair comigo do cinema quando me levou a ver o Bambi, porque eu chorava perdidamente).

Por isso, quando alguém muito próximo me ofereceu este livro com este título Se os gatos desaparecessem do mundo (sim, eu adoro gatos!) com o pedido expresso de uma apreciação, foi com muita reserva que o “ataquei”. E, para mais, de autoria japonesa, estilo narrativo e literário para mim quase desconhecido, que me atenho mais pela literatura portuguesa.

O livro, de Genki Kawamura (n.1979), foi editado no Japão em 2012 e rapidamente se tornou num imenso sucesso de vendas mundialmente, sendo até adaptado ao cinema. Foi o seu primeiro livro, escritor de livros infantojuvenis e também produtor, realizador e guionista de cinema.

A história é muito simples e é-nos apresentada num estilo narrativo igualmente simples, numa linguagem muito plana, com capítulos breves que vão deixando o leitor preso ao enredo. As personagens, poucas e muito próximas do narrador: a mãe, a namorada, o pai, integram-se na história de forma natural e emotiva, mas sempre “a propósito” do que ao narrador aconteceu. E o que lhe aconteceu – a ele, rapaz simples, carteiro de profissão, vivendo na companhia do seu gato, o Repolho, – foi que, aos trinta anos, lhe foi diagnosticada uma doença terminal que lhe deixará muito pouco tempo de vida.

Atarantado com a notícia, chega a casa, onde é quase acordado pelo gato, recebe a visita do Diabo, Aloha, que, divertido e garridamente vestido, lhe promete mais um dia de vida se ele lhe propuser que determinados objetos sejam eliminados do mundo. Por muito estapafúrdia que esta proposta lhe pareça – e a nós! – a fim de ganhar mais uns dias de vida, ele vai fazendo desaparecer os telefones, o cinema, os relógios, até que o Diabo lhe propõe fazer desaparecer os gatos. Apesar de as anteriores eliminações lhe provocarem dilemas e reflexões complexas, esta proposta deixa-o desconcertado, acabando por decidir-se pela sua própria morte. Emocionante mas não dramático, o desfecho da narrativa desenrola-se num corre-corre de organização do último dia de vida, com a arrumação de coisas e de sentimentos, nomeadamente com quem deixar o gato.

De leitura aparentemente leve, este livro propõe-nos profundas reflexões sobre a vida e a morte, sobre as escolhas que supostamente fazemos, sobre os laços que criamos para iludir a solidão.

A cultura japonesa é profundamente diferente da nossa ocidental e é com os olhos postos nessa diferença que devemos partir para a leitura deste livro.