Opinião

Literatura | Carlos Lopes Pires (2018), a noite que nenhuma mão alcança OUtentativas à volta do silêncio

13 set 2018 00:00

Por que insisto em querer falar sobre o que, por vezes, nem o ouvido interior nos revela?

Talvez pela mesma razão que o poeta Carlos Lopes Pires, já com uma vintena de títulos de poesia publicados, desde o longínquo ano de 1993 até agora, ainda não desistiu de encontrar palavras que digam o(s) silêncio(s) que escuta e tem o dom de pintar no eixo vertical da folha em branco, para os partilhar com a procura dos homens comuns: a imensidão insondável do mistério…

Em a noite que nenhuma mão alcança (2018) a procura percorre seis trilhos poéticos, cada um dos quais com a sua fulgurante beleza. No início “tinham rosas e cantavam” é composto por 29 poemas que mesclam as temáticas da alegria de viver, a infância, a paternidade, a renovação e afirmação misteriosa da natureza; e da dor da morte e sofrimentos do mundo; sempre encarados na solidão emocional de cada um de nós, tão semelhante à que todos silenciamos.

E se “[…] Deus assiste / a esta dor sem fim” (p. 15) e “um dia acontece / que a tua vida se torna / estreita demais […]” (p. 29), “[…] porque todos somos estrangeiros / neste mundo // e cada um parte de um livro / que é de todos […]” (p. 38), então Deus é talvez a imensa necessidade de proteção, qual “rosa virada para o mar” (p. 40).

Em “aquele que me disse” encontram-se 25 poemas em que o leitor pode experimentar apelos de religiosidade (veja-se contracapa, e p. 64) contraditoriamente assertivos e logo negados, para que a negação reforce ainda mais a complexidade e fusão das emoções: “não rezo / porque não sei rezar // movo apenas as mãos / muito devagar / até que a boca toque / o mar // depois fecho os olhos / como se abrisse / a minha porta de casa // e ali fico / a ver-te chegar” p. 63).

O silêncio das “mãos abertas / para ti” (p. 64) permite aceder às palavras do interior: “[…] deixa / que esta vida / acabe em mim” (p. 69). Já em “da nossa casa”, os 38 poemas entram pela temática da família e da interrogação sobre os ausentes, tristeza dos traços limpos pela memória, retratos nostálgicos do passado: “[…] nada desaparece // sentome no chão / com os retratos // e vejo tudo / através deles” (p. 107)

Mas “a noite que nenhuma mão alcança” sintetiza em 19 poemas a ignorância do poeta, que continua a perseguir as “portas abertas” (p. 116) do seu coração. E a inquietação resulta da incerteza de “uma palavra que fosse / a única verdade […]” (p. 125) e do receio que a noite se apague, quando se metaforiza nela o caminho dos dias (p. 129).

Provavelmente só a natureza conhece o mistério que o poeta vê e sabe pôr em palavras; porém lhe escapa enquanto discurso racional. Por isso “o poeta escreve cartas aos amigos”, sob a forma de 28 poemas, em que o conceito de poesia é magistral e solenemente explanado, sob a forma de haikus “[…] não era chuva // era silêncio / e tu / eras dentro“ (p. 137).

E só “as coisas e visitas do quintal de pablo”, 20 poemas em que a infância vem ao de cima, num sítio muito alto…, dá o tom de serena harmonia a todo o corpus: “havia uma alegria no mundo // e era dentro dela / que tudo se movia / […] / era sua a luz / e o milagre que nela ardia” (p. 185).

Percebo melhor a minha insistência em falar da poesia de Carlos Lopes Pires. Sou um dos leitores que se identifica com o poema em epígrafe: “senhor // faz dos meus poemas / as palavras que te faltem […]” (p. 9). As minhas são em excesso: nenhuma mão alcança o mistério da noite…

*Docente do Ensino Superior
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990