Sociedade
Literatura | No centenário do nascimento de Sena e de Sophia?
Opinião | "No ano em que passam cem anos sobre o nascimento de dois grandes vultos das Letras portuguesas – Sophia de Mello Breyner...e Jorge de Sena... não há como não deixar aqui um pequeno testemunho da nossa dívida cultural...".
No ano em que passam cem anos sobre o nascimento de dois grandes vultos das Letras portuguesas – Sophia de Mello Breyner (6 de novembro de 1919 - 2004) e Jorge de Sena (2 de novembro de 1919 -1978) – não há como não deixar aqui um pequeno testemunho da nossa dívida cultural, enquanto portugueses, para com o seu trabalho, o seu saber, a sua erudição, o seu imenso valor literário.
Tornar-se-ia impossível fazê-lo aqui tendo em conta toda produção literária de qualquer deles, mas por feliz acaso, caiu-me nas mãos a «Correspondência 1959 – 1978» e a sua leitura atenta é suficiente para ficarmos a saber muito acerca das suas vidas de escrita e de luta.
Licenciado em Engenharia Civil, cedo Sena mostrou grande apetência e talento para as Letras escrevendo poemas, ensaios, fazendo traduções.
Inteligência brilhante e com uma cultura muito para além da média, foi também cedo que se manifestou contra o ambiente de opressão e repressão que se vivia em Portugal nos anos 40/50.
Em 1959, exilou-se no Brasil (para onde foi dar aulas na Universidade de Assis, Estado de S. Paulo) receando as perseguições políticas resultantes de uma falhada tentativa de golpe de estado, em março desse ano, em que estava envolvido.
E é a partir dessa data que começa a troca de correspondência com Sophia de quem era, bem como do marido, o advogado Francisco Sousa Tavares, especial amigo.
Essa amizade intelectual está presente em todas as cartas e postais que trocam, mesmo que, por vezes, passem meses sem se corresponderem.
Na impossibilidade de transcrever pequenos trechos do tanto que as cartas nos transmitem, apontarei as principais linhas de força que delas emergem: O desencanto pelo que se vive em Portugal: «Aqui [em Portugal] nós temos bem pior, num campo onde as tricas são mais perigosas e muitos pacíficos cidadãos nos olham com ódio nas grossas mãos fascistas (os fascistas têm mãos horrorosas): Nem você pode imaginar o que é esta presença do ódio.» ; O medo: «A P.(ide) esteve em nossa casa revistando e levou todas as suas cartas.»; A troca constante dos trabalhos literários entre ambos e a franca e fraterna crítica que se fazem um ao outro; A descrição ultra poética do Algarve, da Grécia, do Brasil, de Florença mais pela mão de Sophia; A referência ao trabalho quase hercúleo de ambos e a constante falta de meios para sustentarem as suas enormes famílias; O sem número de referências culturais, civilizacionais e políticas que gratuita e admiravelmente nos são oferecidas; O conhecimento próximo que nos transmitem sobre outros escritores nacionais e estrangeiros desses tempos; E a gloriosa constatação de que em Poesia pode-se (quase) tudo: «O Francisco tem tido muito trabalho e tudo correria perfeitamente se não fosse o clima político. Eu e você podemos escrever poemas, ensaios, histórias. Ele não pode escrever o que quer, nem dizer o que quer…»
E penso, com alguma angústia, nas evidências culturais que se vão perder com o atual cessar destas trocas de cartas…
*Professora
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990