Opinião
Literatura | Luís Miguel Nava, poesia
“Quem matou Luís Miguel Nava?” se perguntava em Maio de 1995 e aí o fim da escrita de um dos poetas mais promissores do seu tempo com apenas 37 anos
Sobreviverem metáforas que explodem os nossos sentidos e a poesia um caminho para a imortalidade e um devir onde todos nós os inacabados poetas bem como os desajustados amantes do impossível, nos arrebatamos em espelhos ao infinito.
Sim, como espelhos que somos uns dos outros tal como de nós próprios.
O mar, a memória, o sangue, o céu, o espelho, os ossos, as cidades, o sorriso, o rapaz.
A pele que é céu do coração
Um poeta dos sentidos, e do erotismo mais gracioso e o outro, visceral, do nojo e da animalidade humana.
A história escreve-se ao contrário e com o prenúncio do seu fim trágico na poesia que o antecipava.
Há uma pedra feroz,
Um rapaz,
Há o olhar do rapaz atado à pedra,
O olhar do rapaz, a minha casa,
O olhar do rapaz às vezes é a pedra.
Este livro é uma recolha possível e muito bem configurada da história de vida em poesia do autor. Escatológico, cronologicamente cainhamos no seu Ser poético, no homem que se perde de amores e que se rebenta em sangue nas rochas como mar, ou que percorre “assim a praia ao longo do seu braço” do rapaz.
A pessoa, objecto do seu amor é pecado por desejo. Amores iguais aos de outros tantos, mas mais rápido e mais duradouro, mas pejado de impossíveis sociais. A homossexualidade, a igualdade e a diferença com que se encontrava nas viagens ao interior de si, dos que desejava e das cidades de lá fora e cá dentro. Lisboa, Bairro Alto, Bruxelas, Marraquexe.
Fora casado com a poeta Rosa Oliveira de quem se separou, para anos mais tarde ser professor de Português no colégio alemão. Terminado o seu mestrado, fica como assistente na Faculdade de Letras. Irá depois para Oxford como Leitor mas renunciando à solene universidade britânica muda-se para a infernal-dependente Bruxelas onde se perde nas paixões da noite belga que também imagina o Magrebe, em especial Marrocos. Ali figuraria a última ponte entre o ser e a pele-ossos-carne.
A obra desaparecida dos libidinosos silêncios gritados em vida, de uma personalidade solar e homo-erótica trava-se neste livro, de memória. Uma vocação que tinha como paladino Eugénio de Andrade (com quem trocou cartas e até rasgando poesia sua por não se achar jamais da dimensão do seu escritor preferido) e que transbordou a humanidade sobre as letras que desnudavam páginas em branco como Herberto Hélder ou mesmo Al Berto.
Eu amo assim: com as mãos, os intestinos. Onde ver deita folhas
O testamento deixado aos amigos Gastão Cruz, Carlos Mendes de Sousa e Fernando Pinto Amaral quando tinha 33 anos é agora a obra transformada neste livro e o projecto da Fundação Luís Miguel Nava. Neste livro acredita-se a reabilitação da memória e daquela fundação perdida como a pele que passou do tempo.
Tem imensos poemas inacabados, mas fios invisíveis que se interligam, mesmo que a noite seja a mais bebida ou enovoada. Imaginemos Bruxelas e os terrores interiores estancados no prazer da expulsão. De trazer do coração e dos sentidos à pele na pele alheia, no seu interior contra as paredes ou o céu que é já ali se na negritude tudo se pudesse ver com os mesmos olhos.
Este garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos
encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os astros.
É onde o poema interioriza
a sua própria hipérbole, a paisagem.
Movem-se os tigres como câmaras na areia, prontos eles
também a deflagrarem. A manhã
espanca a praia, é impossível descrevê-la sem falar
dos fios deste poema
que a cosem com a paisagem.
E no fim a morte. O amor-ladrão-rapaz, amante ou prostituto (desconhece-se) que caiu na sua armadilha. Ele jamais se suicidaria, mas viver nunca seria suficiente. Vivia para se perder de tudo o que não encontrava em si. Viveu tudo demasiado rápido e para sempre. Até um amor miúdo magrebino que caiu na sua armadilha.
A luz que desse sangue irradiava,
como se nele o sol tivesse mergulhado
e os raios nele se houvessem diluído,
atravessava-me os poros e fazia-me cantar o coração.
Tratava-se de uma luz que nada tinha a ver
com a piedade ou a esperança, mas cuja música,
sem me passar pelos ouvidos, ia direita ao coração,
que no dos animais acabados de abater
por momentos encontrava um espelho ainda quente…