Opinião
Literatura | Os Passos em Volta (Herberto Helder)
Neste mesmo momento em que me encontro o espaço é o meu estrangeiro, melhor dizendo, a distância ou ainda mais sublinhado, as distâncias.
As minhas distâncias do sítio a que chamo casa. Que crueldade é darmos uma capital ao mundo quando não somos sempre os mesmos, nem em toda a parte nem ao mesmo tempo.
Tudo é perene até acabar. O amor pode estar aqui, atrás duma porta, ou entrando com os passos em volta:
“Entre quem? Ora aí está: deveria ser entre mim e ela, e não palavras, palavras, palavras – mas um grande assunto. O assunto de um empenhamento, uma devoção humana. Não gosto de ninguém, mas pergunto: não tenho eu obscuras, calorosas e ricas faculdades? Ela avança para dar-me um beijo. Recebo-o na boca e – fácil! - retribuo. Enoja-me a saliva que me fica nos lábios […] Tudo uma visão desbaratada pelo carácter básico de renúncia ao ardor, à esperança, à alegria. […] E enquanto ela se levanta para alguma coisa definitiva, guardada no tesouro dos séculos, eu afasto-me e, acercando-me da janela, passo a mão pelos vidros embaciados, olho a rua e murmuro: deixou de chover”.
A mediocridade de nos acharmos superiores na solidão dos outros, e por isso, achar a sua experiência menor. Na verdade, o amor pode estar aí nos silêncios e nos gestos velados, de afinal, nos sentirmos menos sós nesta viagem de irmos contra nós próprios, ou a favor, contra aqueles que nos acolhem.
“Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo […] E quando se vira, talvez para dizer: por favor fica – eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?”
Então fugimos de volta ao nosso ser, com a viagem de redescobrirmos o que somos nos que chamamos nossos. Estejam eles no nosso regresso ou no desejo de nos verem de volta. Esperamos quem nos ame para nos receber nestes passos de volta.
“Por dentro, eu estava completamente frio. Ou aterrorizado. Sei apenas que sorri para a minha família – dois velhos estúpidos e inocentes – cheio de boa vontade […] - Voltaste. Voltaste. Que grande aranha, esta mãe velha. As suas patas finas corriam sobre o bordado. Bordaria pelos séculos adiante.”
Podemos perder-nos e talvez nunca de facto nos encontrarmos, até que as coisas simples nos atinjam após essa aventura de irmos. Voltar pode ser mais do que um regresso.
Pode ser enfim, a descoberta de algo que sempre esteve à nossa espera, mesmo que apenas seja essa espera, nós próprios encontrados na nossa solidão.
Perda ou ganho? Descoberta ou perdição? Na obra, quem é o poeta, senão o personagem surrealista que no encontro da imaginação descobre a palavra?