Opinião

Música | A ET que veio do Planeta Fome

25 out 2024 08:30

Nunca baixou os braços e nunca deixou de procurar inventar o futuro, resistindo décadas ao constante bullying da indústria e da imprensa

A meio do ano de 1930, em plena favela de Moça Bonita, no Rio de Janeiro, nascia Elza Gomes da Conceição, no seio de uma família muito pobre, com dez irmãos, que ajudou a criar. Maria-rapaz determinada que tentava, a todo o custo, sobreviver e construir uma vida a partir de quase nada, aos 21 anos via-se viúva, com quatro filhos para sustentar e um recém-nascido a enfrentar uma pneumonia.

Tentando uma forma rápida de conseguir dinheiro para o seu tratamento inscreveu-se num concurso de talentos. Como não tinha qualquer peça de roupa apresentável, alfinetou um vestido da mãe, vários números acima e tentou caprichar no cabelo que acabou por parecer demasiado espampanante. Foi recebida em palco com gargalhadas do público e do apresentador Ary Barroso que lhe perguntou de que planeta vinha. Ela responde prontamente “Do mesmo que você veio, do Planeta Fome”. Arrebatou a audiência e levou o prémio mas uma mulher negra de favela, mesmo que tivesse uma voz e uma força sobrehumanas, naqueles anos não era fadada para passar na rádio, para acompanhar uma orquestra, para cantar na TV ou para gravar um disco e as várias oportunidades que foi tendo foram sempre esbarrando no preconceito racial e machista.

Foram precisos alguns anos até que uma editora a aceitasse e “Se Acaso Você Chegasse” foi um êxito imediato a mostrar uma voz única que muitos classificaram como versão feminina de Louis Armstrong. Sair do Brasil era difícil e quando parte para a sua primeira digressão internacional, na Argentina, acaba por ficar retida no final, quando o seu empresário foge com todo o dinheiro amealhado. Novamente na miséria, acaba por conseguir voltar e recomeçar do zero a cantar no circuito de boates e começa a reerguer a pulso uma carreira onde foi uma das mais poderosas, criativas (e muitas vezes incómoda) vozes da música brasileira.

Elza é bossa, samba e jazz, Elza é rock e electrónica, todas as músicas e causas cabem na voz de Elza.

Elza nunca baixou os braços e nunca deixou de procurar inventar o futuro, resistindo décadas ao constante bullying da indústria e da imprensa.

A partir de 2000, Elza consegue finalmente o reconhecimento e a aclamação internacional, considerada a melhor cantora do milénio pela BBC, nomeada uma das 20 melhores vozes de sempre do Brasil pela Rolling Stone, nomeada a Grammy com o deslumbrante “Do Cóccix até o Pescoço”, para além de trabalhar com nomes como Caetano, Chico, Carlinhos Brown ou Jorge Ben Jor, Lenine ou Marcelo D2, começa a reunir na sua banda jovens músicos e produtores, conscientes do legado da música brasileira mas atentos ao que de melhor se faz na música actual e seguem-se discos seminais e inventivos como nunca se tinham visto na música brasileira como A Mulher do Fim do Mundo, Deus é Mulher e Planeta Fome. A vontade de cantar era tanta que nem os problemas de saúde a impediram de continuar a pisar palcos, passando a ter que se apresentar sentada, mas sempre poderosa e com a voz como arma, certeira e em excelente forma.

A menina da favela passava a diva imortal, por espaços como Royal Albert Hall, Central Park ou Primavera Sound, deixando-nos um exemplo e um legado ímpar, ao longo de mais de trinta discos em que ficamos com a certeza que, se tivesse razão e Deus fosse mulher, era dela o D maiúsculo.