Opinião

Música | As doenças silenciosas e invisíveis

22 mai 2021 20:00

Acontecia muito enquanto fui DJ durante mais de 20 anos

Havia um determinado tipo de cliente que, assim que metia os pés no bar ou na discoteca onde eu trabalhava, automaticamente, pensava que eu já lhe devia alguma coisa.

A fauna que cirandava pelos bares e discotecas era, naturalmente, um reflexo da sociedade. Algures entre a habitual confusão da “obra prima do mestre e a prima do mestre de obras” (um dos slogans da antiga rádio VOXX): ambos com os seus méritos, mas com contextos diferentes.

Este alheamento estrutural cultural, acarreta vários problemas, sendo o primeiro, uma tremenda falta de empatia perante quem também trabalha, numa visão predadora sobre o outro. O anedótico “o meu gin paga-te o ordenado”, sempre foi tão confrangedor e serve só de exemplo para um diagnóstico maior.

Projeta-se falta de exigência e desconhecimento dentro do setor que tanto se diz gostar. Mas não resolve nada nem a montante nem a jusante. É preciso abordar este assunto de frente: no imediato, a fome que assolou o setor audiovisual, e depois, as causas futuras na saúde mental.

Estruturas como a União Audiovisual têm tanto de meritório como de incómodo, pois, a correr tudo bem, não precisavam de existir. Esta associação de cariz social e cultural, sem fins lucrativos, apoia profissionais técnicos e artistas, espetáculos e eventos, recolhem alimentos, satisfazem necessidades básicas e lutam todos os dias.

A intenção do reconhecimento do setor, o estatuto laboral, é uma melhoria, mas é sobretudo uma reparação histórica tardia. É a síndrome do paradoxo da modernização por excesso de tradicionalidade - que trocado por miúdos - significa que isto está ainda tão atrasado, que quando se progride, toma-se como um avanço – que o é de facto – mas que vem tarde. Faz lembrar certas inaugurações em tempo de eleições.

A propósito da Semana Europeia da Saúde Mental que passou, este é outro problema, mas que tem resistências junto dos próprios protagonistas - entre o pessoal técnico, por exemplo - pois é um meio cheio de virilidade.

Na Austrália, num dos setores onde há maior número de suicídios (que é cinco vezes superior à média nacional), encontra-se pessoal da estrada, das tours. Muitos deles, depois dos 40, com problemas graves de saúde, sem suporte familiar, e sim, sem a adrenalina dos concertos ao vivo, entram em depressão com resultados muito preocupantes. Foi por isso que, em 2013, foi fundada a ARCA: Australian Road Crew Association. 

Há um longo percurso para ser feito em Portugal. Ainda se está na fase de mapeamento do setor. Depois de lhes matar a fome, dar voz, reconhecimento e condições laborais dignas, será preciso acompanhar a saúde mental num futuro pós pandémico.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990