Opinião
Música | Captain Beefheart – O homem que moldou o impossível
Este é um daqueles casos em que a influência fala mais alto do que as vendas, que foram sempre bastante discretas
Há artistas que passam a vida inteira a tentar encaixar-se. E depois há Captain Beefheart, que parece ter nascido para provar que o encaixe é uma ilusão confortável. Don Van Vliet, assim chamado antes de se transformar no comandante de um navio que nunca existiu, cresceu no deserto californiano a moldar criaturas de barro, obsessão que lhe valeu convites para programas de televisão quando ainda era adolescente. A dada altura, decidiu que esculpir era pouco. Preferia moldar o som.
É curioso como certos discos chegam até nós quase por acidente. Trout Mask Replica foi daqueles que me conquistou pela estranheza da capa: entre o grotesco e o deslumbre artístico. Vliet diria que o espanto é obrigatório; a rendição, opcional.
A amizade (ou a “pseudo” guerra fria) com Frank Zappa é um capítulo à parte: dois génios excêntricos a disputarem o título de quem tinha o mapa mais rasurado da música americana. Foi Zappa quem produziu Trout Mask Replica em 1969, disco gravado depois da banda de Beefheart, a Magic Band, passar meses trancada numa casa de Woodland Hills, a viver horários desumanos, ensaios que eram maratonas e diretivas criativas que soavam mais a poemas cifrados. Os músicos chamavam-lhe “culto”. Beefheart chamava-lhe “trabalho”.
O resultado dessa disciplina peculiar e inconcebível nos dias de hoje é um álbum que parece desmontar o blues e remontá-lo de olhos vendados. As guitarras entram como quem tropeça, a bateria rejeita qualquer tentação de previsibilidade, e a voz ruge como se a terra estivesse a abrir fendas. Em entrevistas, Don Van Vliet dizia que o seu alcance vocal vinha “de falar com o deserto”. Podia ser um exagero mas há exageros que ficam mais próximos da verdade do que a própria verdade. Do crooner romântico de “I’m Glad” ao rocker enérgico de “electricity”, Beefheart movia-se entre o deserto, o oásis e a alucinação.
Entre as curiosidades que sobrevivem ao tempo: Beefheart dizia ter uma memória fotográfica capaz de reproduzir qualquer objeto que visse; nunca aprendeu música formalmente e rejeitava partituras porque “nenhum papel aguentava vento suficiente”; abandonou a música nos anos 80 para voltar às artes plásticas, onde passou a ser elogiado pelos mesmos críticos que antes o consideravam um enigma inconveniente.
Quanto ao legado, este é um daqueles casos em que a influência fala mais alto do que as vendas, que foram sempre bastante discretas. O post-punk ouviu-o e aprendeu a tricotar melodias; o indie descobriu que a estranheza podia ser casa; o experimental ganhou na figura de Beefheart uma espécie de patrono involuntário. Tom Waits, PJ Harvey, The Fall, Radiohead, Primus, Vampire Weekend, todos beberam de alguma nascente que ele abriu.
Beefheart quis abrir caminho para que o entendimento deixasse de ser a única forma de ouvir e, no fim de contas, deixou-nos canções que se transformaram em novas cartografias.