Opinião
Música | Coleções musicais: a quem confiar o espólio antes de morrer?
Imaginemos por instantes alguém com uma vasta biblioteca e/ou fonoteca, no ocaso da sua existência, virar-se para os seus herdeiros e dizer algo do género: “Na minha coleção ninguém toca, seus bandalhos!”
Uma pessoa sabe do falecimento do vocalista dos The Pogues, Shane MacGowan, protagonista de uma das canções mais belas de Natal – “Fairytale of New York” – e mete-se logo a pensar na finitude.
É uma preocupação de alguns musicómanos, nem todos têm filhos ou familiares que se interessem pelo legado. Sejam discos ou livros, é natural que o valor afetivo seja o que mais prevaleça e deixar as suas coleções a familiares mais próximos é o percurso habitual.
Mas será algo entre o “ai Jesus” e o “cruz credo” a existência de arquivos mortos meio enterrados que existem por aí sejam debaixo da cama, em caixotes, em garagens a ganhar bolor, ou simplesmente em móveis, imóveis, em estantes, estanques a simular um interesse cultural inexistente.
Imaginemos por instantes alguém com uma vasta biblioteca e/ou fonoteca, no ocaso da sua existência, virar-se para os seus herdeiros e dizer algo do género: “Na minha coleção ninguém toca, seus bandalhos!”. Com contornos de argumento de série trágico cómica, aquelas pessoas que gozaram uma vida inteira com “o velho que só acumula pó com coisas que não prestam para nada”, apresentavam-se agora, lambonas, a salivar por uma coleção que pudesse constar nas melhores selfies caseiras para impressionar os demais papalvos.
É um exagero (será?) ou pelo menos é uma possibilidade que daria uma bela série numas dessas plataformas, mas a chamada de atenção para os arquivos mortos é um tema sério. Na hora de nos separarmos da coleção, a quem a deveremos deixar? Há municípios com Fonotecas (Leiria anunciou recentemente a criação de uma para o futuro), e esse é um destino lógico.
Mas também nada impede que uma Associação Cultural tenha um espólio próprio, de nicho, se quisermos, e ter um espaço para consulta e promoção. O mais assustador, repito, é criar arquivos mortos ao invés de poder enquadrar uma coleção num contexto dinâmico.
A conservação é outro ponto. A minha coleção de discos nem é nada de especial – em comparação com outras pessoas que conheço – mas aqui há uns tempos, saquei da prateleira um disco que não ouvia nem arejava fora da capa há mais de uma década. O disco das L7, Smell the Magic, apresentava-se com algum bolor. Foi um sinal de alarme e deu direito a uma vistoria minuciosa à coleção.
Há uma nova geração que não tem acesso a formatos mais antigos. Numa conversa informal com uma banda estrangeira que atuou em Leiria no festival Monitor (da Fade In), comentavam que num outro festival tiveram uma jovem voluntária a vender merchandise e que, por sua iniciativa, redigiu numa folha ao lado do preço a denominação dos discos de vinil: escreveu big cds.
Não é só a criação de espaços que importa, é o que se pode fazer com eles e com que fim.