Opinião

Música | Em repeat: gente sem pressa

11 nov 2023 11:02

Raios me partam se não começo aqui e agora uma campanha para elevar o conceito lúdico de repeat a Património Imaterial da Humanidade

Fala-se muito da falta de concentração dos jovens, mas diria que é transversal a todas as idades. O zapping não é só televisivo, há gente levada da breca que não consegue usufruir de uma só música até ao fim. A tecnologia veio dar demasiada informação, isso já todos sabemos, mas também pode ser útil. Vamos por partes.

Imaginem ouvir um disco em vinil, clássico dos clássicos, a sua materialidade mecânica faz dele um atrativo sonoro para uns e uma chatice para outros. Levantar a agulha, acertar à primeira e deixar rodar. Não tarda muito acaba o Lado A e uma pessoa tem de se levantar para ir mudar a rodela.

A coisa ganha contornos de impraticabilidade para muito boa gente (não será assim tão boa, vá) que acha a deslocação até ao gira-discos penosa e vai daí que há quem recuse esse formato. Há outra malta que compra o disco, mas ouve na net (a portabilidade é um trunfo), enfim, um leque de estratégias e opções metodológicas.

Essa modalidade olímpica que é ouvir uma música em repeat, ou seja, acaba e ouve outra vez, diria que é para gente meia louca, no melhor sentido do termo, que adora verdadeiramente o que escuta e não se cansa a meio, antes pelo contrário, até repete como um bom prato. Ouve-se como um todo. O cérebro entra num modo sofá e envolve tudo à volta. Falo de seres humanos com bondade no coração, sensíveis, e não mamíferos nervosinhos do gatilho, sempre em ânsias.

É uma maldição deste século para gente stressada que não aguenta ouvir 30 segundos seguidos de uma canção, mas para essa fração nada temam pois já inventaram e infelizmente contaminaram o éter com essa coisa. Falo de músicas que aparecem nas plataformas digitais em formato speed up. A sério, o que é aquilo?

Para se perceber, e voltando ao exemplo do vinil, é como ouvir uma música na rotação apressada e muito errada. Uma monstruosidade. No mês passado, no canal Sport TV, num vídeo de homenagem à seleção portuguesa de rugby, escolheram para acompanhamento sonoro a música dos Keane e o tema “Somewhere Only We Know”, mas em versão hélio. Ninguém merece aquilo. Não façam isto aos intérpretes, já há maldade suficiente no mundo, não acham? Lá está, isto é gente cheia de desumanidade no coração, só pode.

Já se repetiam músicas no tempo das cassetes, nem sempre se acertava no início da canção, como é óbvio, mas era o dispositivo que havia. Com vinil era mais fácil pois há o contacto visual a marcar o início do tema. Depois veio o CD e os botões a dizer repeat. Não sei quem inventou aquilo, mas merece uma estátua, um Prémio Nobel do Amor, e sim, raios me partam se não começo aqui e agora uma campanha para elevar o conceito lúdico de repeat a Património Imaterial da Humanidade. O mote está lançado.