Música | Gainsbourg: o génio que seria cancelado nos dias de hoje

Ainda a digerir um momento pós-eleitoral onde o discurso populista de ataque e de provocação capitalizou com o descontentamento e vai gerando, do outro lado da barricada, reações inflamadas que tendem a incorrer também num discurso de ódio e provocação, parece-me boa ideia recuperar um músico verdadeiramente genial, um provocador sem limites, com uma vida recheada de comportamentos e posições que nos dias de hoje o cancelariam, mas que se tornou quase unânime e deixou a banda sonora ideal para o amor em si e para os momentos em que os amantes o materializam de facto.

Passei parte da juventude e adolescência a pensar como é que consigo venerar a obra de um homem que procurava constantemente o escândalo, com comportamentos misóginos, machistas, viciosos, de violência doméstica, inclusivamente com aproximações mais ou menos assumidas a movimentos extremistas e radicais. Serge Gainsbourg era o garoto judeu que, aquando da invasão nazi na capital francesa, passou a ter que usar a estrela amarela no braço, nascido como Lucien Ginsburg, quando começou a tentar a sua carreira mudou de nome para não ser tão imediatamente julgado por ser judeu, assim que se mandou ao rock compôs de raiva o “Rock around the bunker”, quando teve o seu grande sucesso “Je T’aime … moi non plus” a sua primeira extravagância foi encomendar a Cartier uma medalha em forma de estrela de David platinada para se auto-condecorar.

Não há registo de mais ninguém na história da canção que, mantendo sempre uma qualidade lírica deslumbrante, tenha assumido uma genialidade e inovação desconcertante em tanto género musical diferente em menos de três décadas. Serge Gainsbourg começou na chanson française, passou pelo jazz, pela world music, pela pop orquestral, pelas bandas sonoras, pelo rock, pelo reggae e acabou na electrónica.

Se tenho dois ou três ídolos musicais, Serge Gainsbourg é um deles. Não concordo minimamente com muito do que, na sua vida para lá de músico, fez e disse, nunca votaria Serge Gainsbourg, mas não deixo de me sentir agradecido pelo facto de ter desenvolvido o seu trabalho numa altura em que a provocação, o escândalo e comportamentos polémicos e desviantes levavam a uma discussão e reflexão e não implicavam um imediato cancelamento e reacções inflamadas na mesma moeda.

Costumo muitas vezes referir que, em relação a concertos e a discos, aprendo mais sobre o que quero e o que escolho com o que não gosto do que com o que admiro. E se de um lado temos uma vida tantas vezes errática, do outro temos uma obra quase sempre magnífica. Serge Gainsbourg sempre me mostrou que não há nada como saber balancear, reflectir, trabalhar e construir a partir do que não nos agrada e usufruir e partilhar o que nos inspira.

Obrigado Gainsbourg, pela lição que me provocaste e por teres criado grande parte da melhor banda sonora táo eclética e da minha vida e da minha construção.