Opinião

Música | História (II)

15 ago 2020 20:00

A ligação entre a música e a literatura, em Bob Dylan, foi de tal forma inovadora que provocou uma reformulação da música popular.

Qualquer interessado na obra de Dylan aludirá a essa ligação como essencial, não apenas pelas referências literárias explícitas e implícitas, mas também pela maneira como artifícios literários passaram a fazer parte das canções: primeiro, minando as formas tradicionais e alargando as possibilidades de construção de uma canção; depois, recuperando as formas musicais tradicionais, embora agora contaminadas por estas presenças literárias, estas alusões, metáforas, comparações ou citações inesperadas de poemas ou romances.

A proximidade pessoal com os poetas beat, a vanguarda literária americana que também gravitou em torno de Dylan (a relação pessoal de Dylan com Allen Ginsberg salta à vista), não será alheia a uma ideia de inovação literária que apenas os mais reaccionários ainda recusam.

A posição do novo disco em relação à literatura fica logo estabelecida pela referência whitmaniana no título da primeira canção, “I Contain Multitudes”, um verso famoso do poema “Song of Myself”.

O Nobel parece ter permitido uma alteração relevante: no início, quando Dylan cantava sobre ter nascido do lado errado da linha de comboio, esse era o local onde estavam cantores folk e bluesmen; agora, ter nascido do lado errado dos carris equivale a estar “no mesmo lado de Ginsberg, Corso e Kerouac”.

Isto é, onde antes havia nomes de músicos, figuram agora os nomes de escritores.

A diferença parece inócua, mas representa uma mudança relevante. No início, os nomes de músicos mostravam uma vontade de pertencer a um mundo ao qual, por várias razões, não podia pertencer (nem que fosse pelo facto de esse mundo já não existir).

Agora, quando fala do lado errado dos carris, Dylan menciona nomes de pessoas com quem privou e que fazem parte das suas canções e que, por isso, pertencem de facto ao seu mundo; finalmente, depois de muitos anos, Dylan pode construir as suas canções sobre mundos mais ou menos fantasiosos como autobiografias.

Autobiografia, em Dylan, é evidentemente um problema incomensurável e, como as palavras em Direito, tem significados diferentes dependendo do contexto em que se usa.

Mais do que vacilar entre factos ou invenções sobre a sua vida, o que está agora disponível a Dylan é poder recorrer à sua história artística e, com fórmulas arcaicas e recursos estilísticos mínimos, manter uma relação evidente entre a sua voz e o que canta: uma espécie de autobiografia mitológica onde a realidade e a ficção coabitam harmoniosamente.

Neste mundo, sempre que se houve a palavra “eu”, há a possibilidade de uma personagem estar a ser aglutinada por quem canta; a incerteza que daí resulta é onde a poesia de Dylan melhor se articula: nunca é sobre ele, mas é tudo sobre ele.