Opinião
Música | Horários e sons de Inverno
“Que pena que os decibéis do parque verde à-beira-da-estrada-nacional-plantado, façam com que aquela soneca ao comprido não reúna as condições necessárias para a prática da modalidade”
Recentemente fiz um percurso a pé que começou na Cruz da Areia, subi pelo Telheiro, Barreira e desci às Cortes. Pelo caminho, num fim de tarde meteorologicamente agradável de sábado, passei por várias casas onde se reuniam, cá fora nos pátios, grupos de comensais em sã convivência. Este som das conversas cruzadas, risos e tilintar de loiça, fazia adivinhar essa prática tão pacificadora que é comer, rir e beber.
Sem colunas de som aos altos berros, revelador de uma geração menos jovem, ou um indicador claro que se estava longe do centro da cidade de Leiria – recentemente transformada num parque de diversões a céu aberto – era este o som da periferia no passado dia 1 de outubro de 2022. Mas isso pode mudar, entretanto: no fim deste mês muda a hora e, talvez não nos apercebamos, mas os sons da rua também mudam. A pegada humana e os seus hábitos adaptam-se. Provavelmente, resguardados do frio, e por anoitecer mais cedo, essas mesmas vozes ecoarão do lado de dentro das casas, menos presentes na rua e tudo isso afeta inevitavelmente o ecossistema.
O som da chuva a cair lá fora enquanto se está na cama bem aconchegado ou o som da lenha a crepitar aliado a um sentimento bucólico fazem muitas vezes com que nos detenhamos em silêncios cúmplices e deixar os sons naturais ocuparem o seu espaço, que é da natureza por direito.
O cancioneiro popular está cheio de músicas dedicadas ao sol, chuva ou vento. Estou-me a lembrar do tema “Listen To The Wind” dos Tarnation. Ouve-se num tom quase fantasmagórico: Listen to the wind, it calls out my name, It calls with it's wanderin' ways.
De volta à natureza, o autor e compositor canadiano R. Murray Schafter (1933 / 2021) fala na sua obra seminal, Soundscape, sobre o inverno no hemisfério norte, que pode ser muito silencioso nas florestas. A neve, o resguardo de pessoas e animais, a hibernação, são fatores da quietude gélida. Mas eis que tudo renasce. A Primavera, descreve, é violenta em termos sonoros com o gelo a partir e os rios a jorrar.
Schafter reforça ainda mais essa visão com um exemplo descrito pelo compositor russo, Igor Stravinski. Quando lhe perguntaram o que é que gostava mais na Rússia, o músico respondeu: “A violenta primavera russa que parecia começar num momento e depois era como se toda a terra tivesse rachado”.
Para um país ameno como Portugal, a Primavera tende a ser sonoramente mais tranquila, mas noutras latitudes é o degelo violento, um ambiente sonoro que quando ouvido, o melhor é sair da frente, pois vai tudo a eito.
Por cá, que pena que os decibéis do parque verde à-beira-da-estrada-nacional-plantado, façam com que aquela soneca ao comprido não reúna as condições necessárias para a prática da modalidade.