Opinião

Música | O que faz falta é sensibilizar a malta

26 fev 2021 20:00

"A ideia de que nós não éramos pagos pelo nosso trabalho. Uma espécie de elogio da pobreza"

Lá teremos novamente de ir buscar a tirada mítica de Churchill, na resposta que deu a um membro do seu Governo, na II Guerra Mundial, quando questionado sobre se seria preciso reduzir verbas da cultura perante a voraz máquina de reforço financeiro militar: "evidentemente que não! Então para que serviria travarmos esta guerra?", vociferou o camarada Winston.

A julgar pelo seu feitio, deve ter acrescentado um par de palavrões e um ou outro gesto obsceno, e fez muito bem. Perante a atual crise civilizacional, lado a lado com a pandémica, esta é uma lição de cidadania, civilidade e resistência.

Acontece que, aqui há uns dias, num noticiário, fez-se uma peça sobre ruído em tempos de pandemia.

Pensei logo na construção civil, nas horas que qualquer obra precisa de despender a partir pedra, perfurar, cortar, assentar. Veio-me à memória o confinamento de março, onde remodelaram o andar de cima, para meu desespero, onde tudo tremia, perfurava, mesmo em cima da minha cabeça.

Ainda assim, “haja quem não tenha ficado sem emprego”, pensei eu, apesar do transtorno.

Mas afinal, não. A peça jornalística dizia respeito a músicos, que estão em casa, que não tocam apenas para passar o tempo, mas muitos porque estão, efetivamente, a trabalhar. Dão aulas online, praticam, partilham ideias, fazem de tudo para não parar. Dizia a peça que há vizinhos muito incomodados com isso.

Fica a incógnita do perfil de quem faz queixa sobre o barulho de um piano. Uma broca, marreta ou berbequim, sim senhores. Agora, um bandolim, harpa, um canto lírico ou uma viola acústica? O que é isso? Parece aquela rábula dos Gato Fedorento e dos escuteiros. 

Como me poderei esquecer, foi há mais de dez anos, um dia em que fui acordado por alguém que soprava no seu trombone a música do Dallas? Primeiro dei um pulo na cama, pois parecia que estavam mesmo ali, dentro do quarto, depois, comecei-me a rir.
 
No entanto, correm petições racistas, apoiadas por gente aberrante, sob falsos moralismos e revisionismos históricos. Daí até contaminar a comunidade, é um passo. É a cultura, estúpido!

Nós por cá, corria o ano da graça de 1980, e Zeca Afonso já tinha topado todos estes agiotas: “divulgou-se uma ideia viciada entre as pessoas que nos procuravam. A ideia de que nós não éramos pagos pelo nosso trabalho. Uma espécie de elogio da pobreza; (…) as condições difíceis em que cantávamos: salas inadequadas, público ruidoso, (…) necessitávamos de nos defender (…) criar a estrutura de que estávamos carenciados, a qual, não sendo uma agência de espetáculos, atuasse como suporte ou garante de qualidade daquilo que nós produzíssemos, impedindo de cair na esparrela do ‘o que é preciso é aparecer’”. (Portugal Hoje, 11/01/1980).

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990