Opinião
Música | O ritual do habitual: mais um cerco cultural
O que nos compete? Ajudar quem resiste e sofre, preservar a cultura
Reincidente e camuflado de humanista, ficará para a história deste conflito que o cerco às artes surgiu mais depressa do que as inadiáveis sanções. Há um padrão.
Uma menina ucraniana emociona ao cantar num bunker e os seus compatriotas Beton difundem o hino de combate rock, Kyiv Calling. Prova-se que a música une, mas seguem os cancelamentos dinamitando esse mesmo propósito.
Os Motorama são de Rostov, no sul da Rússia - a 180 km de Mariupol, Ucrânia – e cancelaram (lhes?) a tour europeia. Falei com o vocalista por email: Vladislav pede desculpa, mas “we are not into political interviews”. De Leiria guarda “only brilliant memories”. Vieram cá no Entremuralhas 2015. O som dos Motorama, que até à invasão, espalhava amor, fica agora, desgraçadamente, em aberto. “Este mundo está muito mal feito”, lê-se na poesia de Adília Lopes.
Consola saber que nem todos apoiam a besta? Dmitry Muratov é um jornalista russo, não pode com o Putin e é Prémio Nobel da Paz 2021. A banda russa, os Moscow Death Brigade (o nome não é popular) vem da cena punk hardcore. São antifascistas, cantam e lutam contra a homofobia, violência doméstica, detestam a elite russa e a extrema direita.
Por cá, no apeadeiro comentador, não basta repudiar o gang sujo e genocida de Putin, tem de ser sob bitola europeia. É conhecido o cadastro daquele mau guião “Troika - não há alternativa 2011” que serviu, como agora, para conter manifestações culturais que questionem demasiado.
Que a memória não nos falte. Não contem comigo para ajustes de contas oportunistas. A instrumentalização sistémica da cultura merece uma resposta firme, ou como diz a rapper nacional, RUSSA: “não nasci para ser suplente!”.
A Europa vendeu armas à Rússia e continuam por aplicar certas sanções. Deveria eu queimar o disco que tenho dos Motorama? Até gosto de instrumentais, não de ser instrumentalizado. Conhecem a banda portuguesa, 10 000 Russos? São ótimos. E o “Give Peace a Chance” de John Lennon que passou nas rádios em simultâneo? Foi giro porque esta mesma canção queria-se banida quando se invadiu o Iraque.
Não se aprendeu nada. Regressou a perseguição cultural vinda dos mesmos que, enquanto censuram Dostoiévski, pensam essencialmente em duas coisas: crime e castigo. São os que gostam de citar Churchill, mas que ignoram a parte biográfica onde, quando questionado se seria preciso reduzir verbas da cultura para o reforço financeiro militar, Churchill respondeu decidido: “Evidentemente que não! Então para que serviria travarmos esta guerra?”.
A boa sorte do povo ucraniano será também a nossa, daí a universalidade da condenação. O que nos compete? Ajudar quem resiste e sofre, preservar a cultura, mas sem agiotas de circunstância. Terrível exercício que é o equilíbrio.