Opinião
Música | Obrigado, Sinéad O’Connor
Um agradecimento que merece toda uma crónica a uma artista lutadora e corajosa que se eclipsou. Obrigado, Sinéad O’Connor pois de facto nada se compara a ti.
A cineasta Teresa Villaverde já tinha escrito quase tudo o que realmente interessava a 24 janeiro de 2022 numa crónica do jornal Público. Começa com uma descrição aterradora do dia 16 de outubro de 1992 em Nova Iorque num Madison Square Garden cheio com mais de vinte mil pessoas… que a apupavam.
Celebravam-se 30 anos de carreira do futuro Nobel da Literatura, Bob Dylan, o músico Kris Kristofferson deveria apresentá-la, mas perante o incidente a organização pede a Kristofferson que a tire de lá, ele vai, mas para lhe dar ânimo: “Não deixes que eles acabem contigo” ao que a artista responde segura: “Não deixo!”.
E eis que acontece um momento extraordinário. Sinéad fita-os a todos! Estática. De pé. Firme. Durante dois infindáveis minutos. Olhos nos olhos. A dar o corpo – não às balas – mas ao fanatismo religioso, à desinformação, ao retrocesso civilizacional de um conservadorismo atroz. Depois começa a cantar. Sozinha, sem instrumentos, a cappella (irónico, não?).
Canta o tema "War", de Bob Marley, cuja letra é quase uma réplica exata do discurso do líder etíope Haile Selassie em 1963 nas Nações Unidas. Fala de justiça, igualdade, paz, mas acrescenta palavras suas sobre os crimes de abusos contra as crianças.
Sinéad tinha rasgado, duas semanas antes, no popular programa Saturday Night Live, a fotografia do Papa João Paulo II que a mãe tinha na parede do quarto. Mãe abusadora que a insultava e batia. Tinha de ser aquela foto e não outra.
No artigo, Teresa Villaverde, provavelmente enganou-se. Disse a cineasta: “Há muita gente, e muitas instituições, que devem a Sinéad O’Connor um pedido de desculpa. Darão certamente – uns dias ou uns anos depois da sua morte”.
Não deram… ainda não.
Antes da vergonha mundial sem precedentes, na Irlanda, terra natal da cantora, já tinha vindo a público a informação de muitos crimes contra as crianças cometidos por membros da Igreja Católica. Só se falava disso na Irlanda enquanto em todo o lado ainda se pensava que poderiam escapar. E, de facto, escaparam até dar.
Obrigado, Sinéad. Para sempre ficará aquele momento de uma força de mil meteoritos, fitando quem a julgava levianamente: “se sofreu abusos provavelmente foi porque mereceu”, atreveram-se a sugerir. Esse nojo surge no documentário Nothing Compares (2022).
Sinéad apontou para o céu, mas os tolos insistiram em olhar só para o dedo. Obrigado, Sinéad. De pé. Mãos atrás das costas. Olhos nos olhos perante uma multidão enfurecida e cega de ódio. É assim que recordarei Sinéad. Obrigado. De facto, nothing compares to you.