Opinião
Música | Ouvir Poesia
Nunca defendi, nem espero defender, que a poesia deva ser musicada: um poema escrito para o papel deve, em grande medida, ficar lá.
Certamente poderemos encontrar esporádicas excepções em que alguém fez de um poema uma boa canção; ou exemplos de poetas que tiveram carreiras musicais interessantes (Cohen será sempre o exemplo óbvio, mas não é certo que tenha sobreposto as duas actividades).
Os Três Tristes Tigres representam ainda um terceiro caso da relação entre poesia e música: as palavras que a poetisa Regina Guimarães escreve para a banda dão corpo às canções, mas é com a música de Alexandre Soares e, sobretudo, com a extraordinária maleabilidade que ganham na voz de Ana Deus que expõem todas as potencialidades e subtilezas colocadas na sua escolha e organização.
O regresso aos discos, 19 anos depois de Visita de Estudo, uma compilação, e 22 anos depois de Comum, o último de originais, faz-se com Mínima Luz.
Construído novamente sobre as palavras de Regina Guimarães (só não assina duas canções), o disco prossegue o trabalho inovador que distinguiu a banda e a colocou num patamar distinto do das suas contemporâneas no século passado.
Um exemplo óbvio está expresso na excelente À Tona, uma “tradução/adaptação” do poema Life Is Fine, de Langston Hughes.
Canta-se sobre duas tentativas de suicídio falhadas: a primeira, um salto ao rio, onde a água está muito fria e, logo, desconfortável para ficar o tempo necessário para consumar o acto; a segunda, um salto de um prédio de vinte andares, de onde acaba por não saltar por ser muito alto (“não fora tanta a fundura / saltaria daquela altura”).
O humor da versão portuguesa é mais refinado, ou pelo menos é-o na voz de Ana Deus, que dá às tentativas de suicídio descartadas o mesmo dramatismo que dá à vontade de viver.
No fim, quando canta: “morrer de amor é possível / mas eu nasci p’ra viver”, não ficamos certos de que querer viver seja positivo: o romantismo está vedado a quem nasceu para viver.
Perante a impossibilidade do dramatismo romântico, o mesmo que permite morrer de amor, a atenção volta-se para coisas mais comezinhas.
Uma estrofe de Galanteio resume-o: “Faz deste parco momento / um passado suficiente / para se tornar presente / fora do espaço e do tempo”.
A qualidade da banda está na capacidade de decalcar de uma certa trivialidade mundana a emotividade que poucos conseguem suster musicalmente, demonstrando, na prática, a ideia que os críticos do Nobel a Dylan nunca compreenderam: há poesia que precisa de ser ouvida.
Escute-se o riso de Ana Deus, em Estado de Espírito, depois de cantar os versos “e antes de ter o Quixote / na pança”: por vezes, o prazer da melhor poesia não vai além da sua própria composição.