Opinião
Música | Sun Ra: a música como tecnologia de fuga
A sua música avançou porque sempre se recusou a seguir quem quer que fosse, mas, curiosamente, tudo fez para criar um novo território sónico e intelectual
Sun Ra não nasceu em Saturno, apesar de ter passado a vida inteira a tentar convencer-nos do contrário. Nasceu no Alabama segregado, como Herman Poole Blount, e talvez por isso tenha percebido cedo que a realidade, tal como nos é apresentada, é um lugar demasiado estreito. Inventar outra origem foi a sua primeira composição séria.
Estudou piano, teoria, composição e orquestração. Conhecia as bases, as regras, as hierarquias. Duke Ellington foi uma bússola e Fletcher Henderson um pilar. Mas Sun Ra percebeu que repetir o passado era uma forma elegante de estagnação. A sua música avançou porque sempre se recusou a seguir quem quer que fosse, mas, curiosamente, tudo fez para criar um novo território sónico e intelectual que redefiniu as condições de existência da música negra experimental no século XX e que inspirou novos seguidores.
A Arkestra foi mais do que banda, mais do que colectivo, foi casa, escola e nave espacial. Viviam juntos, ensaiavam obsessivamente, vestiam-se como se o palco fosse um portal. Ali conviviam o swing mais disciplinado, explosões de free jazz, poesia falada, percussão ritual e electrónica primitiva. Sun Ra foi um dos primeiros músicos de jazz a usar sintetizadores Moog, não por fetiche tecnológico, mas porque procurava sons que ainda não existiam.
Gravou centenas de discos, muitos em edições mínimas, prensadas e distribuídas pela sua própria editora, a El Saturn Records. Capas artesanais, títulos enigmáticos, gravações irregulares. A obra não se organiza de forma linear: é como um sistema solar. Há discos que soam a uma big band em combustão (Jazz in Silhouette), outros levam-nos a uma meditação cósmica (The Heliocentric Worlds), outros ainda soam a manifesto político disfarçado de concerto (Space Is the Place).
Sun Ra falava de espaço, mas o assunto era a libertação. A ideia de que a música podia ser uma tecnologia de fuga (da realidade, da opressão, da narrativa vigente, do comodismo) atravessou tudo o que fez. Antes do Afrofuturismo ter nome, ele já o praticava com método e convicção.
Morreu em 1993, mas a Arkestra continua em órbita. O legado ouvia-se em George Clinton e passou a toda uma nova geração de músicos. Em Sun Ra encontra-se a raiz de muito do jazz que recusou o caminho da nostalgia e de seguir os standards e encontramos sementes de electrónica que ousou cruzar novos territórios em que dificilmente seria bem vinda.
Sun Ra, deus de Saturno, não nos pediu fé: pediu escuta e celebração. Ensinou-nos que imaginar é um acto político e talvez o espaço não seja um lugar físico, mas a distância necessária para pensar livremente.