Opinião

Música | Suzanne Ciani – Do ruído ao infinito

6 jun 2025 08:56

O seu instrumento de eleição, o Buchla 200, é tudo menos intuitivo. Não tem teclado, não se deixa domesticar com acordes. Mas Suzanne ensinou-o a falar, a cantar e a dar som ao Mundo

Ao entrar na discografia de Suzanne Ciani, uma das primeiras sensações é a de imersão, como se entrássemos num oceano de sons modulados, elétricos mas profundamente humanos. Ciani não se limita a tocar sintetizadores: ela conversa com eles e ensina-nos a descobrir melodias onde antes só reconhecíamos ruído. Há dias lia uma reportagem de como a inteligência artificial dá passos para que possamos entender e comunicar com baleias e golfinhos e mergulhei nos seus discos, onde há tanto de precisão matemática como de lirismo aquático, uma assinatura sonora que a coloca num lugar singular na história da música eletrónica.

Nascida em 1946 em Indiana, Suzanne Ciani cresceu numa época em que a música era quase exclusivamente território de homens, sobretudo quando falamos de circuitos, botões, osciladores e cabos. Formada em música clássica, cresceu com os olhos postos no piano e o ouvido apontado para o infinito, ousou trocar o tradicionalismo do conservatório por uma missão quase impossível: humanizar a eletrónica. E foi no seio da escola de Buchla (alquimista por trás de um dos primeiros sintetizadores modulares) que Ciani encontrou o seu verdadeiro laboratório criativo.

O seu instrumento de eleição, o Buchla 200, é tudo menos intuitivo. Não tem teclado, não se deixa domesticar com acordes. Mas Suzanne ensinou-o a falar, a cantar e a dar som ao Mundo. Se Wendy Carlos fez de Bach um cyborg com o Moog, Ciani preferiu transformar o quotidiano em sonho líquido.

Na década de 70 fazia experiências sonoras com o Buchla e ganhava a vida compondo para publicidade. São dela sons icónicos como o borbulhante “pop” da Coca-Cola ou os efeitos etéreos da Atari. Mesmo usando o seu génio para o mercado, nunca o diluiu e tornou a publicidade num palco para o vanguardismo sonoro.

No seu primeiro disco Seven Waves (1982), encontramos paisagens oceânicas sintetizadas com uma sensibilidade cinematográfica e acaba por ser um dos primeiros discos new age compostos exclusivamente com eletrónica a ser distribuído internacionalmente e a conquistar uma audiência além dos nichos.

Com um contributo que vai muito além da estética, Ciani foi pioneira na criação de música espacial, no modo como moldava o som no espaço estéreo. Usava quadrifonia e sistemas modulares complexos para criar experiências imersivas muito antes da palavra “imersiva” se tornar moda. O álbum Buchla Concerts 1975, lançado apenas em 2016, revela composições ao vivo com um vanguardismo que nos dá hoje a sensação de estarmos num passado secreto a escutar gravações do futuro.

A redescoberta da sua obra nos anos 2010, com destaque para o trabalho da editora Finders Keepers e o documentário A Live In Waves em 2020 confirmaram-lhe o lugar que sempre lhe coube, no panteão sonoro. Se a música é, como ela diz, “uma forma de amor que se escuta”, então nunca foi o silêncio que a separou do reconhecimento, foi apenas a espera pelo momento certo.

A influência de Suzanne Ciani estende-se hoje a toda uma nova geração de criadoras e criadores de música eletrónica que, com sintetizadores modulares e laptops, voltam à matriz artesanal que é, simultaneamente, uma arqueologia do som e um gesto visionário.

Ao contrário de muitos dos seus pares, mais académicos e discretos, Ciani sempre assumiu uma posição de protagonismo junto da imprensa e do público aparecendo em palco, dando entrevistas, escrevendo e ensinando e tornou-se uma referência não apenas pelo que compôs, mas pela forma como existiu enquanto mulher num meio profundamente masculino. Um activismo que se disseminava na incessante capacidade de explorar, na partilha e na empatia com os demais.

Hoje, aos quase 80 anos, continua a apresentar-se ao vivo e vai visitar-nos na próxima edição do Festival Semibreve em Braga. A cada performance, Suzanne Ciani, mais do que música, mostra-nos a reinvenção do instante e o que de mais humano pode haver num circuito de cobre.

Suzanne Ciani não é apenas uma pioneira. É uma entidade sonora e um eco permanente da história musical das últimas cinco décadas.