Opinião

Música | Tesouro Nacional

20 jun 2020 20:00

Não são as preferências, que se podem justificar, que estão sob crítica, mas sobretudo o recusar experiências.

O meu primeiro esboço de texto sobre Transgressio Global, o novo dos Pop dell’Arte, brincava com a ideia de estar na altura de erigir uma estátua a João Peste: porque quando a maioria da música portuguesa era pobre e parola, já havia Pop dell’Arte para nos dar esperança; e porque quando a música portuguesa melhorou, estavam por lá a demonstrar que era possível mais e melhor; e porque quando perdemos a esperança de ser um país urbano, algures no início do século XXI, reapareceram com um disco para lá da mediania, tão cosmopolita como a melhor arte contemporânea e sempre aquém da maçadora genialidade instantânea. Mas o mundo não está fácil para as estátuas e por isso parece-me justo elogiar este disco de outra forma.

Os críticos notam que a banda continua na vanguarda da música moderna e que desbrava novos caminhos; embora legítimo dizê-lo, não me parece que seja suficiente.

Há uma qualidade nostálgica que não pode ser negligenciada, uma certa tonalidade que não é moderna, mas que está longe de estar datada e que se concilia com um período de tempo e espaço onde cabem as muitas personagens musicais nomeadas em “Freaky Dance” ou “Psycho-Urban-Jungle-Rock”.

Há um estilo que é dos Pop dell’Arte, que lhes pertence, e onde é possível essas referências musicais que os sustentam coabitarem com coisas tão heterogéneas como poemas anacreônticos, Catulo, Camões ou Victor Jara.

Pode ser do interesse de Peste mostrar que consegue unificar esta amálgama com o seu estilo, mas seria redutor afirmar que esse interesse se limita a encontrar contextos inesperados (mesmo se tão elegantes como notar que “Vénus gosta de dormir nos braços de Marte a ouvir Sonic Youth num transístor”).

A inferência que se pode retirar de “The King of Europe”, uma sátira à vida no mundo das finanças, é mais aliciante: abdicar de dançar, ouvir música e estar com amigos leva a que apenas se leia Friedman e Hayek, o que leva, por sua vez, a apreciar Reagan e Thatcher, o que, por fim, leva a defender que, em vez de estátuas, se ergam muros.

Não são as preferências, que se podem justificar, que estão sob crítica, mas sobretudo o recusar experiências.

A arte não redime nem salva, mas conviver com ela permite o contacto com formas de pensar diversas; não nos torna artistas, porque nem todos temos ou conseguimos manter o estilo, mas faz de nós cidadãos não circunscritos ao que nos rodeia e, logo, melhores agentes políticos.

Todo o embaraço que nos causam os políticos e cidadãos portugueses a intervir no espaço público por estes dias estranhos pode ser expiado se nos lembrarmos que, no meio de todo o paroquialismo, entre outras coisas poucas, temos ainda a inteligência e a elegância dos Pop dell’Arte, mesmo para tratar de política: afinal de contas, e oportunamente corrigindo o deselegante Bukowski, “o estilo é a resposta (para quase tudo)”.