Opinião
O País das mortes estúpidas
Morte e estupidez são palavras que não se deviam juntar nunca.
Morrer não é estúpido. Ser vitima de certas circunstâncias evoca, no entanto, um lado patético, um certo acaso que tantas vezes tem dedo humano, na forma de acção ou negligência.
Em certas mortes que se tornam “públicas”, ficamos com a amarga sensação que, apenas “por estupidez”, não se conseguiu salvar ou precaver essas vidas. Temos tido vários casos no nosso País, tragicamente recentes. Avionetas que aterram na praia. Árvores doentes, anciãs, que caem e esmagam pessoas, os fogos, as derrocadas das falésias.
A falta de responsabilização efectiva, de respostas que façam sentido, leva-nos todos a especular até ao absurdo. Sem o concreto, vamos, inevitavelmente, para a imbecilidade do estar à hora errada no sítio errado e assim vamos varrendo o pó dos mortos para debaixo do tapete.
“Estúpida” é também a nossa reacção à morte dos outros. Porque exercemos um direito de luto que não é nosso e que não nos coibimos de exibir, dando a “nossa opinião” sobre os “factos”.
É “estúpido” fazer esse luto. Ele só se justifica pelo amor da família e pela amizade dos amigos e temos de aprender a respeitar isso. Os famosos ou anónimos que morrem não são nossos amigos ou familiares. Apenas podemos sentir dor à medida das nossas relações.
Outra coisa é a dor que nos causa o mundo e essa é um caminho que temos de percorrer, ora fugindo dela ou tentando algo que a faça menor. Tudo o resto é inútil e abusivo.
Em Portugal, ainda mal refeitos das “mortes estúpidas” entramos no tesourinho das autárquicas, que até fariam rir se não fossem um assunto tão sério.
É verdade que a mensagem que chega até nós, diz muito mais dos homens e das mulheres que disputam o poder local, do que o que eles pretendem fazer acerca, por exemplo, das árvores que caem, de avionetas que sobrevoam as costas, das estradas que encurralam os seus munícipes numa armadilha de fogo.
Além do jogo do empurra e do “meter-se em bicos de pés”, todos os quatro anos vemos um desfile grotesco de situações, interesses, independências e partidarismos que nos arrepiam como eleitores. Se, para o poder central, somos apenas números, o poder local é a nossa oportunidade para sermos algo mais.
E esta é uma estrada de dois sentidos, que os candidatos às câmaras e juntas e assembleias deviam percorrer com seriedade, a pé, sem carros alegóricos, cornetas ou cartazes que dão excelentes memes para o Facebook.
Parece-me que é tempo de aprender para quem se habilita a um lugar político, que uma vitória em qualquer eleição não é um posto, mas um assinar de um contrato com quem elege, que tem muitas mais obrigações do que proveitos próprios.
Não me parece errado dizer que a nós só nos chega uma parte dessa historia. A parte feia dos padrinhos dos juízes ou dos empregos para a familia. A outra, a do fracasso do poder local enquanto agente de mudança e valorização, continua por contar, encoberta por histórias de excepção que, ainda assim, felizmente, ocorrem no nosso País com meia-dúzia de autarcas que entenderam o que fazer e que amam a sua terra de verdade.
Porque cada vez que alguém morre debaixo de uma árvore, espera oito horas por uma consulta, ou tira dez senhas diferentes na Segurança Social, isso acontece num lugar específico primeiro e só a partir daí se poderá tornar assunto nacional.
É esta dinâmica que se tem esquecido, deste verdadeiro poder muito mais acessível e real do que um ministério de Estado. Esta verdade do poder local, esta oportunidade e vantagem, enterrada sob os escombros de frigoríficos dados, garraiadas, apertos de mão suados e intrigas tem, urgentemente, de vir à superfície.
*Músico e vocalista dos Moonspell