Opinião
O que me falta
São demasiados seres humanos transformados em criaturas que a todo o custo precisam de aprender a resistir e sobreviver ao que, para nós, parece impossível e impensável
Estranha forma esta, a da vida. Talvez ela não se apresente assim tão diferente do que sempre foi; talvez seja apenas a minha atenção estar agora voltada para um lado diferente; talvez, por alguma razão, me doam mais as circunstâncias, as dores dos outros, e as minhas; talvez seja tudo isso e mais alguma coisa, mas o que me chega do mundo vem em revoadas de contraditório que me causam perplexidade, e algum desconforto.
Este não é um texto inspirado, porque não obedece ao seguimento de um pensamento orientado para uma ideia, a um caminho raciocinado para chegar a uma conclusão, ou ao bom uso da imaginação para encontrar uma solução.
Na verdade, não sei bem o que pensar, e esta é uma simples constatação, uma assunção de perplexidade, e uma manifestação de desconforto, causadas pela forma como a vida se pode apresentar realmente estranha.
Há uma guerra na Ucrânia, tão mediatizada que já “apenas” faz parte do alinhamento das notícias; há uma guerra mais antiga, e distante, na Síria, que já quase nem faz parte do alinhamento das notícias, a não ser quando a ela se junta mais uma recente desgraça; há uma Turquia semi-destruída pela natureza, e pela incúria, onde os habitantes vagueiam por entre destroços e mortos sem que se consiga imaginar o que poderão fazer a seguir para voltar a ter uma vida; há uma guerra esquecida, no Iémen, com a pior situação humanitário do mundo; há violência no Haiti; há o inferno do Afeganistão, para quem seja do sexo feminino; há fome, violência e pobreza extremas na Etiópia, no Sudão, na Nigéria, no Líbano, em Mianmar, e no Congo.
São demasiados seres humanos transformados em criaturas que a todo o custo precisam de aprender a resistir e sobreviver ao que, para nós, parece impossível e impensável. No meio de tudo isto, chega o Dia dos Namorados e o nosso mundinho fica repleto de jantares, corações, ursinhos e flores, para manifestação pública do amor. E logo a seguir o Carnaval, a agitar as gentes numa alegria, numa despreocupação e num entusiasmo, quase obrigatórios, e no faz de conta que ninguém deverá levar a mal.
Nada tenho contra todas essas manifestações, embora não pratique nenhuma delas, e menos tenho ainda contra quem as pratica com entusiasmo. Mas é o tempo em que acontecem que me deixa desconcertada, na constatação de uma dualidade absurda, de uma espécie de bipolaridade do mundo que nos obriga a saltar da visão do desespero e da destruição para a visão da folia, e da visão da guerra, do medo e do abandono para a da exibição pública e comercializada dos afectos.
O amor e a alegria serão sempre muitíssimo necessários, absolutamente imprescindíveis, mas a incongruência entre estas manifestações colectivas e a crua realidade, tão lado a lado, mas tão impossíveis de coexistir, provoca-me tristeza e alguma irritação, confesso. Falta-me poder não pensar no abismo imposto a tantos.
Hoje, li de Manoel de Barros, poeta brasileiro, que “tem mais presença em mim o que me falta”. É isso, com certeza.