Opinião
Poder voltar a viver em Gnu
À margem das fronteiras difusas de uma obra que não é definitivamente só para crianças, talvez importe reter que tal como em Marte também na Terra se trate “apenas de uma questão de (nos) compreendermos (melhor) uns aos outros”
“E apontando para a Terra lá acima no céu, o marciano deu a entender que desejava fazer uma viagem, para conhecer outros habitantes e estudar juntamente com eles a maneira de fundar uma grande república espacial na qual todos vivessem em perfeita harmonia. Os terráqueos disseram que sim todos contentes. E, para festejar o acontecimento, ofereceram-lhe uma garrafinha de água fresquíssima levada da Terra. O marciano, todo feliz, enfiou a tromba na garrafa, sorveu, e depois disse que aquela bebida lhe agradava muito, ainda que lhe fizesse andar a cabeça um pouco à roda. Mas agora os terráqueos já não se surpreendiam com nada. Tinham compreendido que na Terra tal como nos outros planetas, cada um tem os seus gostos, mas é apenas uma questão de se compreenderem uns aos outros.” “Os três cosmonautas”, in Três Contos de Umberto Eco e Eugenio Carmi (ilust.), Gradiva, 2021
Não são raras as vezes com que me deparo com esses pequenos tesouros. Livros que na carreira de autores consagrados representam incursões em géneros pelos quais não são habitualmente conhecidos. Ensaístas que escrevem romances, cientistas que escrevem poesia, romancistas que ensaiam um libreto de uma ópera, semiólogos que experimentam a literatura infantil.
São regra geral livros imprevistos que deixam no leitor um rasto de espanto e de surpresa que perdura no tempo e que fazem com que ocupem, no meu caso em particular, um lugar privilegiado nas estantes e no elenco das escolhas de presentes em diversas ocasiões e para diferentes tipos de pessoas.
O excerto com que abro esta crónica pertence a um desses casos. Foi retirado de um dos três contos que compõem um livrinho que tem tanto de breve quanto de profundo e que marca a única incursão do semiólogo, medievalista, filósofo e romancista Umberto Eco no domínio da literatura infantil.
E também no que diz respeito a essa classificação as fronteiras são difusas, sendo uma obra aparentemente dedicada à infância, trata-se, numa segunda análise, de um livro de cuja leitura poderiam beneficiar muitos adultos.
Além de Os três cosmonautas, a edição portuguesa reúne ainda os contos A bomba e o general e Os gnomos de Gnu. Escritos originalmente em 1965 aquando de um encontro informal entre Eco e Eugenio Carmi, um dos mais relevantes abstraccionistas italianos, Três Contos selaria não só uma longa e sólida amizade entre os dois nomes da cultura italiana, como serviria de pretexto para produzirem uma pequena obra invulgar na época, destinada aos mais pequenos, que afloraria temas socialmente relevantes - o desarmamento nuclear, a tolerância, a convivência pacífica entre povos, a poluição e a degradação ambientais crescentes.
Quase sessenta anos volvidos, os temas dos contos voltam a adquirir uma actualidade imprevisível e fazem da leitura desta pequena obra-prima não apenas um momento de especial encantamento com a delicadeza irónica das palavras de Eco e de prazer estético com as ilustrações a um tempo frugais e belíssimas de Carmi, mas sobretudo um lampejo de lucidez face ao contexto que atravessamos.
As ressonâncias deixadas pelo general fascinado pela beleza da guerra que coleccionava galões e bombas atómicas no sótão, ou pela fonética da palavra mãe que pode afinal unir americanos, russos, chineses e… marcianos, ou ainda pelos gnomos de Gnu que desconhecem o significado da palavra imperialismo e que não trocam os seus prados pelas metrópoles tecnologicamente avançadas da Terra, situam afinal o leitor bem no epicentro de um ano de 2022 onde pouco parece ter mudado…
À margem das fronteiras difusas de uma obra que não é definitivamente só para crianças, talvez importe reter que tal como em Marte também na Terra se trate “apenas de uma questão de (nos) compreendermos (melhor) uns aos outros”, tal como escreve Eco.