Opinião

Por dois

28 nov 2019 14:51

Por vezes sobra o silêncio para dizer as coisas indizíveis, que as há, claro! Por vezes impensáveis até.

Bem sei que o tempo agora é mais o das imagens que das palavras. Diz-se até que uma valerá por mil das outras. Mas como posso nomear uma coisa sem a palavra que mais se aproxima do quanto essa coisa significa?

Por vezes sobra o silêncio para dizer as coisas indizíveis, que as há, claro! Por vezes impensáveis até.

Imagens e palavras, palavras e silêncios. Mas também as outras palavras, as não ditas mas que estão lá: pressentidas, adivinhadas, não-tangíveis e tão presentes que são. Uma comunicação para além do que é dito, uma meta-comunicação, chamemos-lhe assim.

Olha-se à volta e vê-se o silêncio, mesmo quando há muito ruído. Imagem sem som como no cinema, quando era só de imagens a preto e branco, rápidas, sem nexo ao som de um piano tocado por um pianista que só dizia “boa-noite”, em que as palavras que não se ouviam na boca dos atores eram traduzidas por pequenas molduras com texto, quando o ritmo da narrativa e o que nela se devia sentir eram acordes do piano invisível. Tanto silêncio que nos faz peixes num aquário sem fim.

Mudos, solitários, desnorte no dizer.

De cá para lá, de lá para cá, em gestos repetidos, iguais entre si num sem-sentido de caminhar para lado nenhum. E os gestos – e algumas palavras que os acompanham também – sucedem-se como fotogramas na cadência dos dias.

Esvaziam-se de sentido por repetidos que são. Aguarda-se a palavra redentora da monotonia dos dias, o grito de revolta, a convicção do outro que nos catalise a vontade.

Aguarda-se, sempre, mas em silêncio, mudos de afeto, da expressão do afeto.

E o edifício da relação a dois vai-se deteriorando pouco a pouco, uma janela mal fechada que deixa entrar o frio da não-comunicação até que o calafrio do silêncio se nos cole aos ossos.

Prédio descarnado, não habitável, telhado de amar e cuidar há muito ausente entre os dois. E surge uma ocorrência, avulso, sem aviso, uma coisa de nada que se agiganta e a ela atribuímos significados infindáveis. Uma torrente de palavras caídas de lado nenhum que adensam ainda mais o frio e corroem as paredes do erotismo e da partilha de um projeto de vida antes sonhado a dois.

Mil palavras para o dizer do silêncio. Mil razões de razão nenhuma que diluído que fosse o acontecimento no tempo todo já partilhad, seria coisa pouca, de somenos importância, a não merecer tão-pouco o tempo gasto com ela.

Bem sei que o tempo agora é mais das imagens que das palavras, mas umas não podem sobreviver sem as outras. Elos de uma cadeia que deve crescer dia após dia, renovados, refletidos.

Associar umas e outras num todo feito memória, manual de sobrevivência para que as relações tenham amanhã. Hoje, enquanto escrevo estas linhas, vou escutando palavras e intenções de quem as diz; vejo imagens de ontem e sempre que me agridem o pensamento.

Hoje, 25 de Novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, incomoda-me o silêncio de quem não quer ver, de quantos silenciam as palavras.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990