Porquês

Desta vez vou voltar à base e falar-vos do meu trabalho enquanto psicóloga educacional na área do neurodesenvolvimento. Há 15 anos que aprendo com as crianças que acompanho e com as famílias que me chegam. Podia listar as aprendizagens que tenho feito, mas não iríamos sair daqui tão depressa. Ainda assim, vou apontar uma competência que tenho vindo constantemente a afinar: procurar o porquê.

Talvez essa procura diária, explique em parte, o facto de por vezes me dizerem que arranjo sempre uma desculpa para tentar justificar uma fraqueza/falha de alguém que não mostrou o melhor desempenho/reação/resposta em determinada situação.

Assumo que tenho essa tendência e não raras vezes tento sentir e vestir a vida desses tais outros, como que à procura de um entendimento para. Talvez seja mesmo defeito de profissão ou empatia a mais, não sei. Ou se calhar é só feitio. No entanto, se tivesse de escolher, diria que é a minha prática profissional a maior culpada. Todos os dias sou como que obrigada a pensar nos porquês que poderão estar na origem de uma dada manifestação.

Bem sei que não é um exercício fácil de se fazer, já que existem mil e uma razões que podem estar na origem de um comportamento, sintoma ou característica. É, como diz alguém que admiro bastante, preciso fazer uma análise fenomenológica dos sintomas e sinais, para não tirar conclusões precipitadas.

Talvez um exemplo torne as coisas mais claras. Vamos supor que uma criança é obesa. Porquê? À cabeça, podemos supor que a sua alimentação não é regrada e que, naturalmente, os pais não estarão a fazer um bom trabalho. Contudo, para além doutros porquês, a obesidade poderá explicar-se pela presença de uma síndrome genética que se caracteriza precisamente por uma obsessão pela comida (hiperfagia), já que não existe a sensação de saciedade que a maior parte de nós conhece. Por isso, se virmos uma criança obesa a comer um gelado, não nos indignemos logo, pois pode ser apenas o gelado mensal a que tem direito. Ou seja, a obesidade não é exclusiva de uma alimentação marcada por excessos.

O mesmo acontece numa birra que vemos uma criança fazer num supermercado. Existem inúmeras condições que a poderão explicar, para além da ausência de limites impostos pelos pais. No entanto, tendemos a “queixar-nos” ou a fazer notar o que estranhamos e o que não funciona bem como nós e isso ainda se torna mais evidente quando a diferença não é fenotipicamente visível. Por exemplo, mais facilmente relativizamos um comportamento menos adequado vindo de uma criança com Trissomia 21 do que de outra com Autismo, pois o autismo não se vê assim a olho nu. É a velha máxima de que o que não se vê não se sente (entende).

E escrevo-vos sobre os “porquês” porquê? Porque testemunho a ansiedade que alguns pais sentem ao terem de se fazer acompanhar com os filhos a qualquer lado, não porque temam o seu comportamento menos convencional, mas antes os olhares de soslaio a que são sujeitos. Isto acontece particularmente com os miúdos com autismo, ou melhor dizendo, com as pessoas que têm uma perturbação do espetro do autismo (PEA). Como referi, macroscopicamente falando, nada se observa de atípico, é depois o comportamento que começa a falar.

Há uns anos atrás, o diagnóstico de PEA tinha um peso gigante. Não que agora não tenha! Contudo, os critérios atuais desvinculam-se de outras manifestações anteriormente consideradas, nomeadamente défices no desenvolvimento intelectual ou linguístico, aligeirando a gravidade do prognóstico. Na realidade, desde 2013, de acordo com a classificação internacionalmente mais utilizada, o DSM-5 1 , a PEA é caracterizada por défices persistentes na comunicação social e interação social, transversais a múltiplos contextos; e por padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades.

Trocando por miúdos, as pessoas com PEA apresentam dificuldades no relacionamento social, na empatia e na interpretação de linguagem inferencial, podendo exibir ainda peculiaridades no discurso e na forma de estar, alterações sensoriais, rigidez de pensamento, aderência inflexível a rotinas e dificuldades em entender ou expressar emoções. Os seus interesses são muitas vezes limitados, fixos e específicos e os seus comportamentos tendem a ser rotineiros e repetitivos.

Assim, podem não entender uma anedota, a ironia ou uma expressão idiomática, apresentar uma reação adversa ao som de um altifalante, não compreender o estado emocional do outro, repetir incessantemente o mesmo assunto, sentir dificuldade na iniciação e manutenção de uma conversa, não mostrar contacto visual, querer seguir sempre o mesmo trajeto ou querer comer sempre os mesmos alimentos,… mostrando essencialmente dificuldade em descodificar os sinais, as subtilezas e as pistas sociais que a maior parte das pessoas considera evidentes e que a comunicação humana implica.

Conhecer pois o perfil das pessoas com PEA permitirá compreender, aceitar e incluir sem estigmas. E esta compreensão, por vezes, é tudo o que as famílias precisam. Há pais que se privam mesmo de saídas sociais, acham que é melhor assim. No entanto, a vida caminha, os miúdos crescem e o tempo de quebrar inflexibilidades e de aprender nos contextos passa.

No início deste mês, assinalou-se precisamente o dia mundial da consciencialização do autismo. Não que eu ache muita piada a estes dias dedicados a uma causa que existe todos os dias, mas tenho a esperança que talvez uma ou outra pessoa, nesse dia, venha a ficar mais esclarecida e sensibilizada para estas questões em particular. Haverá sempre treinadores de bancada, conclusões precipitadas, injustiças e blá blá blá, mas se cada um de nós for um bocadinho mais tolerante, empático e assertivo estará certamente a contribuir para uma sociedade onde cabemos todos. Sejamos facilitadores, menos implicativos e tentemos pensar mais vezes nos porquês. Só isso bastará para tornar a vida de outros mais folgada. As nossas expetativas e as convenções sociais não encaixam em todos da mesma forma, principalmente quando está presente uma disfunção na comunicação.

1 Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais - Associação Americana de
Psiquiatria [APA], 2013.