Opinião
Proteger o frágil e o perecível
Vivemos numa sociedade que descarta pessoas e sentimentos, ao mesmo tempo que os cidadãos abdicaram da sua privacidade em troca do conformismo
A 24 de fevereiro as televisões noticiavam, ininterruptamente, a invasão da Ucrânia, por parte da Rússia. A guerra chegou e substitui o tema da Covid- -19. Socialmente, o comum português, concluiu, por entre a incredibilidade e uma falsa segurança, que a pandemia tinha acabado com a guerra.
Mesmo que milhares de pessoas continuassem a morrer, diariamente, com a doença. Passámos a sentir o horror de outras mortes. A de ucranianos. De todas as idades. Vivemos a angústia. Organizámo-nos e criámos campanhas solidárias de recolhas de bens. Fomos em carrinhas para a Polónia e para a Roménia, com o objetivo de ajudar os refugiados que fugiam da guerra. Estávamos revoltados e queríamos agir. Nem todas as pessoas tinham de ser sensíveis e de se preocupar com o que acontecia na Ucrânia. “Aquilo é lá longe”. Esta foi, decerto, a expressão mais “ignorante” que ouvimos a tanta gente que se esqueceu que vivemos na “aldeia global”.
E rapidamente chegou a temática da dependência energética. De seguida, a escalada dos preços no setor da energia, a inflação, a consequente subida das taxas e o contínuo aumento do preço das matérias primas. Talvez no princípio de setembro, alguns dos que referiam que “aquilo é lá longe”, perceberam, que afinal, havia uma guerra na “esquina da rua”.
Mas, entretanto, o conflito e as mortes da guerra na Ucrânia deixaram de ser notícia de abertura de telejornais. Até para os mais sensíveis, parece que a distância e a rotina, contribuem para a diminuição da importância da miséria e da morte de milhares de pessoas. Que processo incompreensível, quando pensamos no conflito entre Israel e a Palestina, na guerra do Iraque, da Síria, da República Centro-Africana, nos fluxos migratórios na rota do Mediterrâneo Central, na ausência de direitos humanos em países como o Afeganistão ou o Irão... Para onde caminha o ser humano?
Assistimos a uma assustadora indiferença perante a morte. Vivemos numa sociedade que descarta pessoas e sentimentos, ao mesmo tempo que os cidadãos abdicaram da sua privacidade em troca do conformismo. As pessoas colocaram-se em sintonia e permitiram às plataformas digitais que lhes moldem emoções, captem tendências e manipulem escolhas. Vivemos numa sociedade em que o Homem passou a estar ao serviço da tecnologia, transformando-se num sujeito passivo e sem estatuto.
Até quando vamos permitir que a ambição do Homem em “ter”, continue a ultrapassar a necessidade de ele “ser”? Necessitamos resgatar a ética subjacente à essência do ser humano, focados numa estratégia de previsão e responsabilidade. Uma responsabilidade que obriga, incondicionalmente, à proteção do frágil e do perecível (dos mais necessitados, dos refugiados, dos migrantes, dos que não têm o que comer).
Somos responsáveis pela proteção da vida. Num sentido único, que vai daquele que possui poder para o frágil. É nesse sentido que devemos reconquistar a responsabilidade coletiva, que se sobreponha à individual, mas que proteja cada um de nós, numa expressão de ação conjunta, sob a égide do humanismo. Esta é a batalha pela nossa existência, onde todos fazem a diferença.