Editorial

Quando as pessoas não cabem num julgamento

27 mai 2021 10:21

O que está em causa, neste julgamento, é o apuramento de eventuais responsabilidades na morte de 63 pessoas, cercadas pelo fogo

Esta semana vamos falar de Justiça. Um tema arriscado, mas que, à luz da democracia e da liberdade de expressão, não pode estar arredado das opiniões, sobretudo das que são proferidas de boa fé.

Começou o julgamento para apurar eventuais responsabilidades criminais nos incêndios de Pedrógão Grande, ocorridos em Junho de 2017. 

Passaram quase quatro anos e levanta-se a primeira questão. Será que o processo era assim tão complexo para demorar tanto tempo a chegar à fase de decisão? 

A juíza titular do processo diz que sim, o Ministério Público diz que nem por isso. Baralhados? É normal.

A Justiça é pautada por leis, e o esgrimir de argumentos em fase de arguição, na maior parte das vezes, tem mais que ver com a vontade ‘cega’ de interpretar os diplomas legais do ponto de vista técnico, do que em ‘espreitar’ um eventual sentido de humanização deixado (nem que seja nas entrelinhas) pelo legislador.

O que está em causa, neste julgamento, é o apuramento de eventuais responsabilidades na morte de 63 pessoas, cercadas pelo fogo.

Já ficou claro, nos vários relatórios produzidos, que muita coisa falhou. Mas é agora que os acusados lutam pela inocência e os acusadores clamam por uma eventual penalização.

Quanto mais não fosse, por respeito às vítimas e aos seus familiares, exigia-se que as audiências decorressem de forma serena, sem incidentes. 

Mas ainda a primeira sessão não tinha iniciado e já circulava um ‘ruído’ de fundo por causa da sala escolhida para a sua realização, que limitava a entrada a apenas quatro jornalistas, devido às restrições sanitárias.

O repórter do jornal Expresso, para não arriscar, chegou ao Palácio da Justiça de Leiria às 05:20 horas da manhã. Seguiram-se muitos outros, como era de esperar, e subiram de tom as vozes da indignação.

Entre requerimentos e comunicados, e até uma acção de protesto de funcionários judiciais, lá se encontrou uma solução para os jornalistas, que foram acomodados num espaço, onde ia sendo reproduzido o registo áudio do que se estava a passar no julgamento. 

Já os advogados, em número considerável, lavraram um voto de protesto por, alegadamente, não terem sido cumpridas as regras de distanciamento social dentro da sala de audiências.

Como se todos estes imbróglios não fossem suficientes, o Ministério Público decidiu entrar com um recurso para as instâncias superiores, por entender que o processo não devia ter sido classificado como megaprocesso, ou seja, como um processo de especial complexidade.

Quer isto dizer que à luz da lei, e tendo em conta que este expediente só vai ser analisado no final do julgamento, toda a prova que for produzida nas próximas audiências (e serão muitas), pode ser considerada nula.

Se assim for, ficamos a saber que há graus de complexidade que não são considerados complexos. Só não ficamos com a certeza onde cabem as pessoas na nossa Justiça.