Opinião

Quando os livros nos escolhem…

15 ago 2024 16:09

Acredito, mesmo, que os acasos não se dão por acaso

Acredito piamente que os livros nos escolhem. Acredito que nos observam, nos seguem, nos estudam. Acredito que há livros que se colocam no nosso caminho e nos cativam, nos atraem e nos dizem «Fica comigo!»

Acredito, mesmo, que os acasos não se dão por acaso. Dão-se porque tem de ser, como aconteceu com o Livro de que vos vou falar e que vivia numa sala forrada de prateleiras de madeira tosca. Vivia, lá, empoeirado e esquecido e completamente ignorado pelos vizinhos, obras literárias de renome.

À noite, depois de um dia de correria e azáfama, naquela casa de uma família feliz, o silêncio era quebrado pelo debitar do miolo que cada uma das obras carregava. Nesse momento, O Livro fechava-se na sua capa, protegendo-se daquele estranho mundo ao qual não o deixavam, nem queria, pertencer.

Refilavam os eruditos, enalteciam-se os snobs, protestavam os arrogantes, defendiam-se os poéticos, apaixonavam-se os românticos, lamuriavam-se os trágicos, fingiam os dramáticos, pigarreavam os didáticos, idealizavam os epistemológicos, identificavam-se os biográficos, saltitavam os aventureiros, imaginavam os fictícios, informavam os realistas, suspendiam os misteriosos, amedrontavam os terríficos, declamavam os prosódicos, todos eles tentando impor os seus géneros.

O Livro sabia por que não pertencia aqueles vis seres de papel. Jamais incluiriam no seu círculo, um livro que não sabia ler.

Um dia, O Livro afoitou-se.

«Digam-me, por acaso, sou uma Enciclopédia?» perguntou, agitando-se na prateleira numa tentativa de atrair sobre si os holofotes.

As gargalhadas soaram como o silvar de flechas lançadas, com desdém, atingindo-o, dolorosamente.

«Uma enciclopédia?» indignava-se um dos vizinhos «Onde estão os teus óculos?» ironizava «Uma enciclopédia cansa a vista e vem, sempre, acompanhada de óculos.»

«Aprende a ler ou pensas que já nascemos ensinados?» acrescentava outro.

«Posso emprestar-te um mapa!!!» zombava um Atlas «Talvez haja alguém que te queira, o que eu duvido… Nem toda a gente quer livros que não sabem ler!»

Então, O Livro não se conteve e engoliu, amargamente, uma lágrima que o insuflou.

O caos instalou-se, imediatamente, naquele bairro de papel.

«Ai, meu Deus, choraste! Para além de não saberes ler, também não sabes que um livro nunca chora! Salvem-se!» gritavam «vem aí o dilúvio!»

Então, O Livro sacudiu a capa, afastou as folhas molhadas, mediu a distância e lançou-se pelo ar caindo junto da porta dum quarto.

Ouviu uns passos pequenos.

«Pobre coitado!»

Umas mãos quentes afagaram-no.

Depois, um sorriso enorme e uns olhos brilhantes iluminaram-lhe a capa.

«Uau! Folhas novinhas! Vou já pôr-te a secar. Ah, é verdade! Ainda não sei ler, nem escrever, mas havemos de aprender juntos. Agora, só te vou desenhar e pintar»

E, pelas mãos daquela criança que O Livro, depois de muito observar, seguir e estudar, acabou por escolher, foram desenhadas as mais belas histórias numas folhas em branco que, afinal, nunca nada tinham tido para O Livro ler…

Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990