Opinião

“Quem cala… consente” - da discussão à ameaça

10 jun 2022 15:45

O problema, para mim, é: E os outros? O que têm feito?

Meu caro Zé,

Não pode deixar de me impressionar a capa (e o artigo que lhe corresponde) do último número da The Economist: A New Era – Why the war in Ukraine makes nuclear conflict more likely.

No desenvolvimento do artigo relembra-se que, no início da invasão, Putin “ameaçou os países tentados a intervir” com consequências “como nunca vistas na vossa inteira história” (a tradução é minha).

Lembra ainda que, mesmo antes da invasão, o perigo nuclear estava a aumentar (Coreia do Norte, Paquistão, China e potencialmente o Irão), considerando que esta proliferação reflete o “enfraquecimento da repulsa moral que restringe o uso de armas nucleares”.

Daí concluir que a estratégia de ameaça nuclear, por parte de Putin, seja ainda mais corrosiva.

Este adjetivo lembrou-me uma expressão de Francisco Lucas Pires – “A meia verdade é mais corrosiva que a mentira” – que, aliás, muitos políticos usam com grande habilidade.

E encontro algumas similitudes quando substituo “meia verdade” por “ameaça” já que esta era “mais mentira” antes, porque o espírito era de “dissuasão” e não de “ameaça” nuclear, e, agora, a ameaça parece ter-se tornado mais credível, corroendo todos os esforços diplomáticos.

Daí a conclusão do artigo: “Se Putin estiver convencido que as suas ameaças nucleares tinham sido a diferença entre a derrota e um impasse que salva a face, a Rússia seria ainda mais perigosa que nunca”.

O problema, para mim, é: E os outros? O que têm feito?

The Economist lembra que em 1994 a Ucrânia entregou armas nucleares ex-soviéticas em troca de compromissos da Rússia, Estados Unidos da América e Reino Unido de que não seria atacada. Como bem salienta a revista, em 2014 (anexação da Crimeia), a Rússia quebrou flagrantemente essa promessa, tal como, aliás, os Estados Unidos da América e o Reino Unido, que “assobiaram para o lado”.

Também não devemos esquecer que a Rússia foi concentrando tropas e exercícios militares nas fronteiras com a Ucrânia, sem que fosse dada verdadeira atenção ao problema pelos europeus e americanos.

A seguir vem o reconhecimento pela Rússia das duas repúblicas separatistas.

É certo que quase ninguém acompanhou esse reconhecimento, mas ninguém declarou que não reconheceria e que isso era uma violação da integridade da Ucrânia.

Esse gesto destruiu as possibilidades da diplomacia e abriu o “caminho a uma intervenção militar armada” pedido por dois “países soberanos” (no entender da Rússia, é claro).

O voto na Assembleia Geral da ONU foi muito badalado, esquecendo-se as muitas (e relevantes) abstenções.

Em particular a China, com uma neutralidade ativa de semi-defesa da Rússia (as 5977 ogivas russas e um território imenso devem contar contra as 350 da China) e, espantosamente, a Índia, deram abertura à atitude continuada de Putin.

Quem cala… consente!

Não estamos “no fim da história” de Fukuyama, como ele já reconheceu, mas esperamos que não estejamos no outro diferente. Calar não é solução, certamente.

Até sempre


Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990