Editorial

Trocar o carro de serviço por um passe?

13 jun 2024 08:03

Entre nós, o carro é um símbolo de status. É uma medalha que mostramos aos amigos, esfregamos na cara dos inimigos e até a quem acabámos de conhecer

Aquilo que o presidente da associação ambientalista Zero, Francisco Ferreira, sugere na entrevista que publicamos esta semana no nosso suplemento Ambiente, Energia e Climatização parece uma verdadeira ‘blasfémia’.

A muitos, que estão habituados a um certo conforto, ao lerem a sugestão pela primeira vez, certamente parecerá.

Mas após uma segunda reflexão, ainda veremos o tema da mesma maneira?

Permitam-me que elabore o assunto.

Falando em sustentabilidade e necessidade de reduzir a pegada ambiental, Francisco Ferreira pergunta se não seria possível as empresas apoiarem os trabalhadores, pagando-lhes um passe de transporte público ou oferecendo uma bicicleta, e não com carros de serviço e gasolina, no caso daqueles que residem próximo do local de trabalho.

A ideia é estranha? Bom, tem alguns pontos interessantes e exequíveis, com resultado prático, no entanto, sejamos sinceros, é completamente destinada ao fracasso em 99,9% das empresas portuguesas.

Decerto, é óbvia a vantagem ambiental após breve reflexão, não obstante, seria um cenário inaceitável num país onde muito se luta para se ascender socialmente.

Ser-se senhor doutor ou engenheiro é um conceito ainda muito presente na mentalidade de um povo que não conheceu nada senão privações desde que, a 5 de Outubro de 1143, o filho de um imigrante nascido em Dijon, na actual França, e de uma galega resolveu imaginar um país e proclamar a sua criação.

Nem, na chamada "época áurea" dos Descobrimentos, 99% dos portugueses conheceram algo que não a pobreza profunda.

O odor a canela da Índia jamais lhes fez cócegas ao nariz.

Com as conquistas dos últimos 50 anos, um “canudo” na mão neste País à beira-mar, passou a ser encarado como sinónimo de elevador social, de voar e saltar barreiras... pelo menos, para aqueles que anda acreditam na “meritocracia”.

Noutros países do Norte e do Leste, com quem gostamos de nos comparar, os cidadãos, pelo menos os mais atentos, já perceberam que o verdadeiro sentido de uma vida com valor vem dos actos, do bem-estar do espírito e de um certo desprendimento das coisas terrenas.  

Entre nós, o carro é um símbolo de status.

É uma medalha que mostramos aos amigos, esfregamos na cara dos inimigos e até a quem acabámos de conhecer.

Aceitar a opinião de alguém que nos diz “que tal as empresas apoiarem os trabalhadores, pagando-lhes um passe em vez de carros de serviço?”, mesmo que seja a bem do futuro da Humanidade, parece-nos intolerável.

Provavelmente, com alguma razão, se atentarmos aos sacrifícios para obter o privilégio de ter um carro de empresa. 

Façamos, contudo, um breve exercício.

Imaginemos como seria a nossa vida, de passe na mão, numa cidade imaginada – que não aquela onde vivemos -, onde os transportes públicos funcionam, sem o tal carro, sem medos nem segundas intenções.

Espero que a vós, tal como a mim, a ‘blasfémia’ já pareça mais lógica.