Opinião

Valha-nos Deus

15 jan 2021 17:52

Com todo o respeito pela linha da frente (médicos, enfermeiros, auxiliares) e pela linha de trás (cafés, restaurantes, tascas, comissões de festas e músicos), tomo a liberdade de escrever e partilhar algumas linhas convosco, com enfoque na proibição (esperemos que temporária) da actividade cultural.

Começo por dizer que, com todo o respeito (outra vez), são também os médicos, os enfermeiros, os auxiliares que vão aos nossos concertos.

Para quê? Para “desanuviar” dos horrores e das limitações diárias do seu trabalho.

Agora, já nem isso. Acrescento que são também os donos dos restaurantes e cafés que servem as refeições e os cafés e finos à nossa equipa técnica, aos nossos fãs, a nós próprios que tantas vezes vamos parar (em fotografia) às paredes de quem nos recebe com tanto amor e dedicação. Saudades.

Sim, é verdade, a sociedade é um mecanismo em que todos engrenamos em conjunto. Um toca, outro coze batatas, um dá a medicação, outro canta, e todos vamos, à nossa maneira, salvando as vidas e as mentes de quem faz o favor de nos acompanhar.

Infelizmente, o Governo não percebe, nem quer perceber esta simples evidência. Vamos à notas então:

- A Cultura, para o Governo, é um acessório. Graça Fonseca é tratada e age exactamente como um acessório: abanando que sim com a cabeça, reunindo com alguns “agentes” e, no fim, à grande e à socialista, mandar dinheiro para cima. Sem critério, sem plano.

- Se a Ministra passa este exemplo, é mais que natural que na opinião pública, a Cultura esteja cá bem em baixo na valoração e entendimento da sua utilidade pública e pertinência social. São “os artistas” e isso tudo diz.

- Os critérios para encerramento total dos espaços culturais e de restauração só podem ser políticos, e, como tal, altamente discutíveis. Não conheço nenhum parecer sanitário ou médico que assim o exija, ou nenhum estudo que assim o comprove. Se existir, fico grato que mo enviem, como parte interessada e trabalhador impedido de fazer o seu trabalho. No entanto, não é do conhecimento geral nenhum caso ou surto de Covid-19 ocorrido na fruição de um espectáculo cultural; e parece-me que o único surto registado num restaurante foi em Comporta, no Verão.

- Nenhuma candidata ou candidato presidencial, ou nem sequer o Presidente em exercício, se dignou a fazer uma visita a um grande armazém de material de som e luzes, para entender melhor o que está em jogo, o investimento financeiro, técnico e pessoal. Só João Ferreira fez uma sessão com músicos e agentes culturais. De resto, um grande vazio e o sublinhar da periferia onde os políticos colocam esta indústria.

- Quase a acabar, não existe grande diferença entre a experiência religiosa e a experiência cultural. Para muito de nós, a música é a nossa religião e num Estado “laico” (não te esqueceremos Guterres!) devíamos poder exercê-la. No que há uma grande diferença é no pagamento de impostos, estando a Igreja isenta (por concordata) da grande maioria dos impostos caros e o IVA da música comprada, por exemplo, ser de 23% como num artigo de luxo.

- Por fim o Governo devia ter recompensado os promotores, artistas, técnicos e afins pelo rigor, esforço pessoal e financeiro com que mantiveram as regras para uma cultura segura, onde não foi detectado nem um único caso de Covid. Devia aprender, sublinhar e acarinhar. Em vez disso, castiga.

Que Deus nos valha.