Opinião

Veredito

18 fev 2016 00:00

O meu avô, que foi quem me fez crescer e tornar-me gente, sempre me ensinou: a palavra de um homem é o que há de mais sagrado!

Não desejo mal nenhum ao rapaz. Mas talvez as coisas tivessem outro desfecho se ele tivesse sido mais firme. Nem precisava de ser tão arrogante como o advogado do Bancúnico, que esse estava ali como peixe na água.

Assim que entrou no tribunal tirei-o logo pela pinta. Era assim para o baixito mas olhava as pessoas de cima para baixo, como quem se quer fazer mais alto do que era na verdade. Bem-vestido. Aquilo não era fato comprado ao mercador da feira. Se o meu avô o visse, dizia logo: apessoado! Depois dava um estalito com a língua que era o jeito dele para dizer que apreciava uma coisa, uma situação, uma pessoa. O meu advogado, não. Era tão novinho, coitado!

Não tive coragem de lhe perguntar, mas tenho para mim que era a primeira causa que defendia. Mas não tinha escolha. Ou aquele ou nenhum. E mesmo assim… Foi o que as senhoras dos Serviços de Apoio ao Carenciado Social me arranjaram. Eu ainda lhes disse que não era preciso estar a incomodar um advogado por um nada. Então, se eu tinha a razão do meu lado e se nos tribunais se faz cumprir a justiça, havia de haver algum juiz que não me defendesse na honra da minha palavra dada?

O meu avô, que foi quem me fez crescer e tornar-me gente, sempre me ensinou: a palavra de um homem é o que há de mais sagrado! A gente até pode estar a assinar um papel com o nosso sangue, mas se estivermos de má-fé estamos a assinar de mentira. Mas as senhoras disseram que não. Que era da Lei do Império. Que ninguém podia ir a tribunal sem um defensor oficioso.

Calhou-me aquele. Que é que eu podia fazer? Esforçado, lá disso não tenho dúvidas, que o moço até transpirava de volta dos papéis à procura de argumentos para mostrar que eu sempre tinha sido uma pessoa de bem, de boas contas, trabalhador, sem vícios, um homem de palavra. Que eu não tinha a culpa que a Grandindústria tivesse fechado portas dum dia para o outro e deixado sem pão mais de metade das famílias da cidade. Que para saldar a minha dívida me dispunha a trabalhar por comida e uma enxerga.

Mas o advogado do Bancúnico era mais palavroso e estava sempre a repetir: como provam os factos… e depois mais uma ladainha de leis e artigos e alíneas e parágrafos que eu não fazia a ideia do que diziam, mas sabia que me estavam a traçar o destino dali para a frente. Por isso é que não me espantei nada quando o juiz me leu a sentença.

Mais claro que água da fonte não podia haver: prisão domiciliária com mecanismo de controlo remoto de movimentos. Ainda lhe pedi, com respeito, que me mandasse para uma das prisões do Império. Mesmo que fosse para longe, lá para a zona das neves onde se conta que os presos no inverno não se deitam com medo de morrer gelados. Que a mim pouco me importava, sozinho na vida nunca iria receber visitas, pelo que a distância nem contava. Mas quê?

A Lei do Império impunha que se contivessem os gastos e só albergava nas prisões presos que fossem um perigo para a ordem e a moral do Império. Neste instante preciso, vou desobedecer à sentença do juiz. Não posso manter-me em prisão domiciliária porque à porta estão os executores do Bancúnico a despejar-me de casa. Cinco passos para além da porta e o mecanismo de controlo remoto de movimentos explodirá.

*Psicólogo