Opinião
Vida de cão
Já passava das 11 horas da noite quando ele entrou e se sentou num dos bancos livres. Era sábado e a esta hora havia felizmente lugares na carruagem. Pálido, visivelmente cansado, respondia pausadamente à senhora de meia-idade que se sentara à sua frente.
Enganara-se duas estações antes e agora teria de dar uma volta maior. Vinha do aeroporto onde trabalhava, ia para os lados da Amadora, onde morava. Queria chegar rápido a casa, até porque já eram mais que horas de comer qualquer coisa.
Não, ainda não tinha jantado, nem comera nada depois que começou a trabalhar às 3 da tarde. Era sempre assim, já que nas horas de trabalho não podia comer fosse o que fosse. Não, o chefe não deixava, e a verdade é que não havia tempo.
Havia sempre gente a atender. Não, nem uma bolacha como lhe recomendava a senhora que levasse no bolso e comesse, disfarçadamente. Mas não, não dava… porque se o chefe desse por isso… O rapaz (talvez de 25-35 anos) estava pálido.
Agora transpirava menos, já tirara a gravata e desapertara o colarinho da camisa, mas continuava a sentir necessidade de passar pela cara e pelo pescoço, ora a mão, ora o lenço que tirava e colocava no bolso, nervosa e repetidamente.
Tirava os óculos e voltava a colocá-los, enquanto a senhora sentada em frente se lamentava de não ter nada de comer para lhe dar, nem sequer uma bolachita. Mas, como a esperança é a última a morrer, revolvia o interior da sua mala à procura da bolacha que não tinha.
E insistia, com ar maternal, que ele deveria levar qualquer coisa para comer, nem que fosse à socapa. O rapaz repetia que não podia, que era assim. E suspirava enquanto dizia que felizmente amanhã não trabalhava, era a sua folga.
Parecia mais cansado quando dizia que agora seria rápido. Olhava para o relógio enquanto dizia que talvez só tivesse de esperar mais uns 10 minutos pelo comboio, depois do que teria de fazer o resto do percurso a pé, e chegaria a casa para finalmente comer qualquer coisa. Teria a namorada à espera…
*psicólogo clínico
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