Opinião
A bipolaridade da autarquia
A pergunta mais simples que se pode fazer ao decisor político é: qual é a razão para promover e autorizar grandes construções à beira de um rio?
É provável que quase todos os presidentes de câmaras municipais do País já se tenham apercebido de que a descentralização é um caminho sem volta. E isso vai exigir das autarquias duas competências fundamentais: estabilidade financeira e decisões políticas coerentes, visando a sustentabilidade, a coesão e a competitividade do território.
No orçamento para 2023, a Câmara Municipal de Leiria (CML) prevê arrecadar 34,8 milhões de euros de impostos directos que são, essencialmente, impostos sobre o imobiliário (IMI e IMT). O montante desses impostos já representa mais do que as Transferências que o Estado central faz à autarquia (34,6 milhões de euros). Este é o primeiro sintoma de bipolaridade da CML. Se, por um lado, revela o reforço de receitas próprias, salvaguardando assim a estabilidade financeira, por outro lado expõe uma visão errática, na medida em que aumenta o índice de construção na cidade.
O segundo sinal de bipolaridade é a tensão do índice de construção à beira rio, desprezando, assim, a sustentabilidade ambiental. Um pavilhão multiusos com 4.500m2, estabelecendo uma ligação ao projecto Aquapolis (8 hectares) na Barosa. A terceira construção à beira rio recém-anunciada é a de um hotel de quatro estrelas com 112 quartos no Arrabalde da Ponte.
A pergunta mais simples que se pode fazer ao decisor político é: qual é a razão para promover e autorizar grandes construções à beira de um rio? Mas ainda há uma segunda pergunta: qual é a razão para aumentar as tensões sobre a cidade, quando toda a gente sabe que a nova gestão das cidades é a promoção das zonas verdes e a diminuição das tensões urbanísticas?
Um terceiro sinal de bipolaridade (irrazoável) são as ilhas urbanas que vão fazer a medição da qualidade do ar, ruído e tráfego em tempo real. Ora, se a CML entende que deve acentuar as tensões urbanísticas, é expectável que a qualidade do ar vai piorar, o ruído vai aumentar e o tráfego vai ficar mais caótico em hora de ponta.
Afinal, as ilhas servirão para quê? Para avaliar o que é expectável vir a acontecer? Mas há ainda uma quarta bipolaridade da autarquia. Todas as construções civis em andamento que vão aumentar substancialmente o povoamento urbano, mais as unidades hoteleiras previstas, mais os projectos da câmara, mais a permissividade clarificada pela alteração do regulamento do centro histórico, enfim, o conjunto global de todas essas decisões não é acompanhado por um plano de mobilidade urbana.
É certo que está a ser previsto um parque de estacionamento na rotunda D. Dinis com uma zona verde. Mas a CML está mesmo convicta de que as pessoas vão deixar lá o carro e vão vir para a cidade de autocarro? É?!
Todos esses sinais de bipolaridade da acção política da autarquia indicam duas situações: o poder político local desconhece a crescente insatisfação da população que faz uso do centro urbano e desconhece o que é a nova gestão pública das cidades.