Opinião
A Casa que Canta: Crónica de uma Excepção
Quando uma casa consegue transcender estes constrangimentos — quando respira com o lugar, quando acolhe música e vida, quando se torna mais do que a soma das suas funções — isso já não é norma. É acidente feliz. É a excepção que denuncia o empobrecimento sistémico de uma prática milenar
Chegam-me imagens de uma casa nas Fontes, transformada em palco. Pela terceira vez, os muros de tijolo e os vãos cuidadosamente proporcionados acolhem músicos e público, numa osmose entre arquitectura e vida que deveria ser banal. Projectei-a entre 2016 e 2019. Hoje, vê-la funcionar assim deveria reconfortar-me. Não reconforta. É antes a confirmação melancólica de que o excepcional se tornou transgressão.
A arquitectura contemporânea padece de três males que a esvaziam progressivamente da sua substância vital.
Primeiro, a hipertrofia regulamentar. O arquitecto português despende hoje mais tempo a navegar labirintos burocráticos do que a conceber espaços. Tornou-se mediador entre ansiedades clientelares e exigências camarárias, gestor de conflitos normativos, tradutor de decretos-lei. O tempo para pensar — esse luxo ancestral da profissão — evaporou-se entre formulários e pareceres. A imaginação espacial sufoca sob pilhas de papel timbrado.
Segundo, o paradoxo da desconfiança informada. Nunca os clientes souberam tanto sobre arquitectura — Pinterest, revistas, programas televisivos — e nunca confiaram menos nos arquitectos. Querem o que viram algures, mas temem o que não conhecem. Contratam um profissional para depois o manietarem com referências avulsas, como quem pede a um chef para reproduzir fast-food. A literacia visual não gerou confiança criativa; gerou ansiedade mimética.
Terceiro, e mais corrosivo: a cisão entre capital e cultura. O poder de compra concentra-se crescentemente em mãos que valorizam metros quadrados sobre proporção, equipamento sobre atmosfera, ostentação sobre habitabilidade. A casa torna-se cenário para barbecues junto a ecrãs gigantes, em salas dimensionadas para o eco, não para a conversa. A arquitectura como bem de consumo, não como amplificador existencial.
r.Quando uma casa consegue transcender estes constrangimentos — quando respira com o lugar, quando acolhe música e vida, quando se torna mais do que a soma das suas funções — isso já não é norma. É acidente feliz. É a excepção que denuncia o empobrecimento sistémico de uma prática milena
Há qualquer coisa de catártico em articular estas frustrações sistémicas sem cair no puro lamento — transformar a indignação em diagnóstico preciso. Ninguém imagina o trabalho invisível cristalizado naqueles muros. As horas roubadas à burocracia para pensar um detalhe. As batalhas subtis para preservar uma ideia. O esforço hercúleo para que a arquitectura seja, simplesmente, arquitectura.
Nas Fontes, onde nasce o Liz, uma casa canta. É belo e é trágico. Porque deveria ser apenas normal.