Opinião

A memória

19 mai 2022 15:45

Mais do que sermos as nossas circunstâncias, ou as nossas escolhas, nós somos as nossas memórias

Aprender e recordar são duas incríveis capacidades do nosso cérebro, que nos permitem adquirir novos conhecimentos através do processo da aprendizagem, e reter esses conhecimentos através da memória.

Dividida em diferentes tipos, por sua vez alojados em diferentes espaços no cérebro, e tendo por finalidade diferentes aspectos do nosso comportamento, a memória, e mais exactamente a chamada memória episódica, ou esporádica, é o que nos faz sermos nós.

Mais do que sermos as nossas circunstâncias, ou as nossas escolhas, nós somos as nossas memórias, criadas na parte do cérebro que regista acontecimentos pessoais, isto é, lembranças autobiográficas ligadas a acontecimentos específicos que nos fizeram sofrer, amar, desiludir, apaixonar, ou experimentar uma grande felicidade e que, sendo aprendizagem, vão determinando o modo como reagimos depois a novos acontecimentos.

Mas nunca nos poderemos lembrar de tudo o que nos acontece, já que a memória recorda, mas também promove o esquecimento, num processo de protecção que por um lado elimina acontecimentos desagradáveis e por outro vai fazendo a limpeza neste nosso disco rígido de forma a criar espaço através da eliminação de factos sem importância.

Ficaríamos então com uma sucessão de acontecimentos desligados entre si, com fragmentos sem uma linha condutora, o que do ponto de vista da existência seria perturbador não fosse a memória ter o papel de unificadora dessa história fragmentada, ao criar uma linha de tempo, uma possibilidade de viagem mental no tempo subjectivo da nossa vida, que desse modo se torna coesa.

A relação entre emoção e memória faz com que os acontecimentos pessoais mais emotivos possam ser muito mais facilmente recordados, mesmo que distantes, e permaneçam tão vívidos como quando aconteceram: o melhor Natal, as circunstâncias de uma grande desilusão, um dia muito especial, o motivo de um grande desgosto, um primeiro beijo, o sofrimento de alguém que amamos, serão para sempre relembrados, revividos, e recontados na nossa memória, permitindo uma consciência do que sentia o Eu que éramos nesse momento distante, e do que sente o Eu no momento em que de novo o recorda.

É um olhar para nós que nos permite saber o que sentimos, como sentimos, e como nos vamos construindo.

A maioria dos acontecimentos autobiográficos marcantes devem-se à presença dos outros na nossa vida e a maioria das nossas memórias mais emotivas estão ligadas a pessoas significativas, de quem desejamos muito a proximidade, ou de quem procuramos a distância e desejamos o esquecimento o que, lamentavelmente, é um desejo gorado já que o esforço de esquecer apenas aviva a memória indesejada.

Se a memória dos acontecimentos pessoais marcantes nos faz, em grande medida, sermos quem somos; se a existência dos outros na nossa vida é parte crucial desses acontecimentos; então, a presença dos outros na nossa vida, e vice-versa, é fundamental para sermos quem somos.

Tenhamos, pois, consciência e cuidado com o que de nós poderá vir a ser marcante, de forma positiva ou negativa, na memória de outros.