Opinião

A paz, o pão, a habitação, saúde, educação 

27 abr 2023 16:03

Quase cinquenta anos depois, temo agora pelo futuro que está reservado à minha filha no país democrático onde está a crescer

O dia 25 de Abril nunca foi um dia simples. Na minha cabeça de criança era um misto de festa, de trabalho e de inquietação. A minha mãe acordava cedo para ir comprar cravos vermelhos. Com ela seguia até ao cemitério para enfeitar a campa do meu avô, preso político, que não chegou a conhecer o fim da ditadura. Os cravos decoravam depois a casa.

A minha avó, que vivera a ditadura temerosa da ida do filho para a guerra colonial, comovia-se enquanto o fazia, o que eu não compreendia uma vez que Portugal já era um País livre. Na sala listavam-se os livros proibidos que depois de 74 tinham saído do cofre, e a minha mãe ajeitava com minúcia o poster do menino louro a pôr cravos vermelhos numa G3 que nunca mais saíra da parede.

Ouvíamos atentamente pela rádio os discursos proferidos nas Comemorações Oficiais e a lista dos companheiros de prisão do meu avô era enumerada como se de uma homenagem se tratasse.

O meu dia prosseguia pela mão do meu pai, professor primário, que me levava para o jardim da cidade onde organizava anualmente uma sessão de pintura para crianças. Ajudava-o a carregar baldes de tinta, rolos de papel e ainda a estender as cordas onde os desenhos das crianças ficariam pendurados a secar, sendo depois eleito o que melhor representava o significado do dia.

Passava o resto da tarde a lavar pincéis e a repor tinta nos potes que as crianças utilizavam para fazer os desenhos. No jardim ouvia-se música de intervenção e foi lá que aprendi a descodificar as letras das canções do Zeca Afonso nas conversas com o meu pai. 

Aquele dia era também o único do ano em que, à hora de almoço, podia comer um cachorro e beber uma Laranjina C. Essa era a parte da festa na minha cabeça de criança. A inquietação chegava ao entardecer quando, com o que sobrava de tinta, o meu pai me deixava fazer o meu desenho.

Na realidade nunca tive muito jeito para desenhar, mas naquele dia queria mesmo que o meu fosse o desenho mais bonito. Uma infância inteira não chegou para que fosse o escolhido.

A essa hora ao jardim chegava a minha mãe para me levar para casa. Era, então, uma mãe-consolo, mas nunca lhe confessei porque voltava tristonha da Festa no Jardim.

O serão era passado a relatar o dia e já não me lembro bem em que altura da noite entoávamos a canção «Somos livres» da Ermelinda Duarte. Deitava-me com a inquietação do desenho nunca eleito e com o sonho de o meu vir a ser, um dia, o escolhido.

Na semana seguinte, no jornal local, publicava a notícia sobre as comemorações do 25 de Abril com uma fotografia do meu pai a lavar pincéis e a reprodução do desenho vencedor.

O 25 de Abril não é um dia simples ainda hoje em minha casa. Compro cravos vermelhos com a minha filha, passeamos na Avenida da Liberdade a par da marcha. Recordo os dias que vivi com os meus pais e explico-lhe quem foi o bisavô.

O meu pai já não organiza a festa no jardim e a minha mãe já não compõe o poster do menino louro na parede. Quase cinquenta anos depois, temo agora pelo futuro que está reservado à minha filha no país democrático onde está a crescer.