Opinião
A pele que nos veste
Numa bela tarde de Verão, tocávamos nós um festival no Leste da Alemanha, quando, por nós, passou uma pessoa que nos lembrou um conhecido; um técnico de uma banda... mas esta pessoa tem peito. Tem as unhas arranjadas. Usa roupas de mulher.
O trabalho continuou, o concerto acabou, e, passado um momento - talvez sejam assim os momentos da verdade -, ela (que já não é ele) senta-se ao pé de nós e conta a sua história, a sua transformação recente, mas que tem 30 anos de segredo e de superação. Mas fiquemos por aqui. Não me sinto autorizado para mais.
Sempre achei importante conhecer filosofias que invocassem como princípio uma mudança de perspectiva. Quem não se lembra de aprender a Revolução Coperniciana associada à Filosofia do Kant, no antigo 12.º ano? Se não se lembram, não faz mal, porque, na verdade, o que se pretendia descrever era uma mudança de perspectiva: o Sol não rodar à volta de Terra. Transferir o centro da atenção do nosso pensamento do objecto para o sujeito. O voto das mulheres. Coisas assim.
A nossa sociedade não tem causas “fracturantes”. Ela é, em si própria, muito mais do que fracturada. A sociedade é fracturante, sem aspas. Estamos no grau zero da preparação para entender e aceitar mudanças de paradigmas.
Na verdade, ainda nem nos livrámos das questões essenciais, mas, agora, a nossa luta diária é pouco mais do que uma sobrevivência para respondermos, à altura, aos padrões capitalistas e relacionais que moldam os nossos quotidianos. O ter e nunca o haver.
É necessário um grande esforço para sairmos das opções que nos foram dadas pela sociedade e pela nossa educação. Muitas vezes, quando estamos a ser inocentes, o mundo nos parece absurdo.
E enquanto nos revoltamos contra o que nos parece absurdo, absorvemos as más energias das correntes que andam à nossa volta, a esperar de trancar o nosso pensamento livre. A invasão de assuntos, a “emergência de minorias problemáticas” que ou conviveram connosco toda a vida, sem segue derramado; ou das que nasceram ontem; confunde-nos.
Perdemos o fio à meada. Entramos a meio da discussão. Não estudámos para a lição e não podemos copiar por ninguém.
Quando viajamos na autoestrada do conhecimento, não queremos desvios secundários e, por vezes, esquecemos que, em caso de dúvida, podemos partir o vidro e libertar a nossa inteligência, aquela com que decidíamos antes de picar o ponto com os amigos nas redes que nos prendem mais do que nos libertam.
Tendo isso dominado, podemos até atrever-nos a pensar que vamos finalmente ver o outro por aquilo que ele é, que inclui, queiramos ou não, aquilo em que ele se transformou para finalmente começar, dentro de si, a ser.
Sim, porque as pessoas são tudo menos barro nas nossas mãos. A mudança de perspectiva aqui até seria simples: bastava deixar de pensar que as pessoas são aquilo que fazemos delas.
Ao contrário do politico que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas, estamos como ele, a maior parte das vezes, profundamente enganados sobre a realidade e sobre os outros. Tal como num casamento feitos de mal-entendidos, para o bem e para o mal.
Nem sempre a pele que nos veste nos serve. A minha nova amiga não me falou do desconforto dessa pele. Não era preciso. É uma coisa que consigo (no abstracto, ao menos) entender e que me abriu uma janela para dentro da compreensão de um tema que arrasa as nossas convicções morais e fronteiras sexuais. Um verdadeiro teste à nossa plenitude humana, mas, porque não, também uma oportunidade?
Nem sempre a pele que nos veste, nos serve. Em absoluto, não nos define. E não, não é a única coisa que nos torna naquilo que somos.
*músico e vocalista dos Moonspell