Opinião

A sombra

21 jul 2022 12:44

Não é uma leitura de férias. É uma leitura para a vida

“Actualmente nove países possuem armas nucleares (…) o arsenal mundial é composto por 15.000 engenhos, cinco vezes menos do que durante a guerra fria, mas ainda assim largamente suficientes para destruir várias vezes o planeta. Acreditam que a minha história terminou? E se estiver apenas a começar?”

A vida de Didier Alcante, autor de banda desenhada de origem belga, mudou aos onze anos de idade, quando visitou pela primeira vez o Museu do Memorial da Paz de Hiroxima.

Na altura tinha apenas noções elementares de história, mas era já amigo de Kazuo, um rapazinho japonês que tinha ido viver para a Bélgica com os pais e de quem se tornou amigo.

Dotado de uma inteligência brilhante, Kazuo rapidamente aprendeu francês e o orgulho que sentia pelo Japão depressa contagiou Didier que, pelos olhos do amigo, descobriu, primeiro no papel, a beleza das cerejeiras em flor, os templos xintoístas, o código de honra dos samurais e a sofisticação tecnológica e arquitectónica de cidades como Tóquio.

Didier, por seu turno, simplificava a integração do amigo num país como a Bélgica revelando-lhe uma das suas mais celebradas manifestações artísticas – a banda desenhada.

Um ano bastou para que a relação de Didier e Kazuo ganhasse a fundação inabalável das grandes amizades da infância, que nem o regresso da família de Kazuo ao Japão conseguiu alterar.

Dois anos depois reencontrar-se-iam em Hiroxima.

Nada na cidade, excepto a ruína da cúpula do antigo Palácio Industrial, parecia, na mente de uma criança, denunciar a ferida aberta que a deflagração da bomba atómica no dia 6 de Agosto de 1945 deixaria no local.

Até ao dia em que Didier entrou no Museu do Memorial da Paz de Hiroxima. Uma entrada directa na idade adulta e o instante exacto em que sentiu que perdera a inocência.

Os números, as imagens, as réplicas do dia funesto que perduram pelas décadas, deram-lhe uma ideia de um país muito diferente daquele que imaginara através das descrições de Kazuo.

O que mais o impressionaria no museu, no entanto, seria a sombra de um desconhecido que morreu instantaneamente desintegrado em Agosto de 1945 - e que por um processo químico complexo ficou decalcada numa escadaria, a 250 metros do hipocentro da explosão.

Essa imagem, para sempre gravada no fragmento de escada guardado no museu, viria a ditar o rumo de grande parte da vida de Didier.

Da sua primeira viagem ao Japão traria duas perguntas obsessivas: Como foi possível ter chegado àquele ponto? Qual poderia ter sido a história daquela pessoa-sombra?

Aos onze anos Didier veio do Japão com um livro por escrever.

A ideia do projecto jamais o abandonaria, assim como a compulsão para se documentar e procurar fazer a reconstituição possível daquele acontecimento sem trair a sua aproximação subjectiva aos factos.

Já com uma carreira de argumentista afirmada, Didier decidiu avançar em 2015 para aquilo que seria uma novela gráfica de grande fôlego capaz de traduzir o impacto que aquela sombra tivera nele. 

Com a colaboração do co-argumentista Laurent-Frédéric Bollée e do ilustrador Denis Rodier, escreveu A Bomba, lançado agora em edição portuguesa em dois volumes (Gradiva, Junho, 2022).

São cerca de 450 páginas sobre os meandros da construção da bomba de Hiroxima, as profundas contradições da guerra e dos seus agentes, os dilemas éticos e morais de quem esteve envolvido no processo e a absoluta ausência de sentido dos conflitos armados.

O desenho é extraordinário e o texto um mergulho avassalador e polifónico num momento histórico que adquire uma proximidade estranhamente preocupante no contexto que atravessamos.

Não é uma leitura de férias. É uma leitura para a vida, como foi o encontro de Didier com a sombra no degrau da escada do Banco Sumitomo.

Se puderem leiam e deem a ler.