Opinião

Afortunados os que nada têm

4 ago 2018 00:00

Num belíssimo poema da peça Mãe Coragem, Bertolt Brecht, enumera a sagacidade de Salomão; a coragem de César e a honestidade de Sócrates.

Relembra ainda o fim trágico de todos eles, vitimas de traição fatal. Conclui, dizendo no final de cada verso,  que foram essas qualidades que os condenaram, os levaram à morte, à infâmia, ao degredo. 

Intui-se que o autor pensa que teria sido melhor para eles, serem absolutamente normais, sem rasgos de inteligência, grandiosidade ou bravura. Assim, não estariam no radar da História, sobre o olhar impiedoso dos Homens que condenam a torto e a direito quem ousa pensar ou agir de forma diferente dos demais.

Os tempos não terão mudado assim tanto. A praça pública transferiu o contacto directo para uma dimensão virtual, e o espirito destrutivo instalou-se mundialmente e vive connosco em casa, como uma mulher rabugenta ou um marido colérico, que simplesmente acham que nós não acertamos uma.

Pinho, Robles, o nosso todo-menos-humilde Sócrates, a Assembleia da República, os deputados e dirigentes amnésicos na hora das contribuições, os donos disto tudo, Beiva, Vara, Granadeiro e Espirito Santo, amén! os donos disto tudo, sempre nos foram iludindo com as suas pretensas capacidades de liderança e risco e tomando conta da sociedade. Só o conseguiram deixando um rasto de destruição à sua passagem.

Vivem agora,entre nós, impunes e ofendidos pelo que lhes aconteceu. Uma vida patrocinada pelas indemnizações milionárias e pelas retortas de uma Justiça que não sendo cega, sofre de cataratas, necessitando de urgente intervenção.

Mas, na verdade, o que irá acontecer de facto?

Nada de especial.

É ingénuo pensar que pagarão pelos seus crimes de uma forma adequada a eles. Aliás, quase todos se presumem inocentes ou apanhados numa conspiração, e tentam, muito mais que expiarem os seus crimes de uma forma que lhes permitisse uma verdadeira reabilitação, recuperar à ganância a sua vida pública e empresarial.

Se Salomão, César e Sócrates não tivessem sido abençoados com sabedoria, coragem e honestidade, não falaríamos aqui deles. Também não tinham tido um fim trágico.

Se nós não tivéssemos sido abençoados com uma ingenuidade tal que nos permite pensar que a cultura só funciona e conta quando entregue aos políticos e ao capital; que nos permite ficar chocados que um deputado da Esquerda seja afinal um proprietário tão vil e orientado pelo lucro e pelas entrelinhas da Lei tanto quanto os outros; que nos autoriza a pensar que talvez os nossos representantes no Parlamento deem o exemplo e usem com parcimónia, e sem chico-espertices, todas as grandes vantagens e ajudas de custo dadas para o desempenho do seu trabalho. É ingénuo pensar que levantada agora a nuvem protetora de um Verão esquisito, que as matas estão limpas, que o Governo pagou e que desta o Sol não queima e que os pirómanos estão tofos presos.

Como Salomão era brilhante; César guerreiro e Sócrates verdadeiro; nós somos assim: ingénuos como o caraças.

Afortunados os que não o são. Irão ser os donos disto tudo.

Tenham um bom Verão. 

*Músico