Opinião
Ainda sobre a polémica eutanásia
O verdadeiro medo está no sofrimento sem sentido. “Morrer é fácil, o pior é o caminho que fazemos até lá chegar”
Enquanto psicóloga clínica e trabalhando com idosos, trabalho o fim de vida e também os lutos. Pensar em morte é algo sempre para depois. Nenhum de nós quer pensar no seu próprio final de vida nem daqueles que amamos. É ansiogénico pensarmos (para já) no fim. Muitos de nós ficaríamos paralisados se pensássemos a sério nisso.
Quando andava na faculdade, na cadeira do professor Rodrigo Saraiva, este pediu-nos que imaginássemos a vida dos nossos familiares se nós nunca tivéssemos existido. Depois de termos dado voltas à cabeça, explicou-nos que o nosso ser cognoscente não consegue conceber tal realidade.
Falou-nos do nosso instinto primitivo de auto-preservação. O que quase nos levaria a pensar que o suicídio seria algo contra-natura. Mas e se muitas vezes for forma de auto-preservação da mente?
Eu não acredito, e vejo isso no meu trabalho, que as pessoas simplesmente queiram morrer. Vejo sim pessoas em sofrimento intenso. O verdadeiro medo está no sofrimento sem sentido. “Morrer é fácil, o pior é o caminho que fazemos até lá chegar”, dizem-me eles.
No início deste ano atendi numa única consulta uma senhora que havia acabado de receber uma notícia de cancro pulmonar. Estava assustada com o diagnóstico e ponderava recusar tratamento pois não tinha esperança que o desfecho fosse diferente. Não seria esta uma forma de suicídio encapotado? Contou-me como a filha com quem não tinha uma relação próxima se enroscou no sofá com ela e chorou em silêncio como que dissesse “vou ter saudades tuas”.
Disse-lhe que muitas vezes os doentes aceitam tratamento não por si, mas para minorar o sofrimento dos familiares, para lhes dar tempo para se adaptarem à inevitável realidade que se aproxima. Que facilita o processo de luto. O que no fundo não é bem justo para o doente, lidar com o luto da sua própria vida e com o sofrimento dos seus familiares. Mas será um último presente de vida.
Três meses depois recebo uma mensagem de uma familiar a anunciar-me que o sofrimento havia terminado. Numa das minhas aulas de “Expressões & Emoções” na universidade sénior decidi abordar sem medos o final de vida e tentar perceber como queriam os meus alunos idosos que fosse o final.
Descobri vários lutos patológicos mas senti que esta conversa franca os deixou mais aliviados e libertos. No final, penso que todos nós só queremos ter escolha, uma palavra a dizer mesmo que não façamos uso da liberdade que esta nova lei nos consagrou, a de decidir sobre o nosso final de vida.