Opinião

Blimunda

28 nov 2024 16:22

Durante sete dias, a miúda debateu-se no ventre materno numa tentativa de sobreviver a uma morte anunciada

Não! Ao contrário do que possam pensar, não vos vou falar da grandiosa personagem da incontornável obra de Saramago… Vou falar-vos de uma Blimunda, uma mulher raçuda, rude e forte que nasceu num dia sombrio e impiedoso, um daqueles dias que marcam e definem, inevitavelmente, o futuro.

Blimunda, nome invulgar, germinou de Blimundo, nome de um pai que abjurou a sua criatura quase, mesmo, antes de saber da sua existência.
Homem vil e cruel, Blimundo, levou na cantilena uma jovem e frágil rapariga de aldeia que abandonou assim que se apercebeu dos enormes cuidados que lhe bateriam à porta.

Gritando aos sete ventos, fingiu-se louco e partiu, numa madrugada, deixando a rapariga, jovem, frágil e, então, desamparada, a alimentar, dentro de si, uma vida não abençoada. Só que, de jovem e frágil, a rapariga passou a raçuda e forte, como o haveria de ser a filha que nasceria, e, contra tudo e todos, fintou as adversidades da vida, levando a que a bebé vingasse. Tinha a certeza que que a vida se encarregaria de restituir a, ambas, a honra que lhes era devida.

Pois bem! Recordam-se que Blimunda nasceu num dia sombrio e impiedoso, daqueles que marcam e definem, inevitavelmente, o futuro? Assim foi! Durante sete dias, a miúda debateu-se no ventre materno numa tentativa de sobreviver a uma morte anunciada.

Não aconteceu a sua, mas a da mãe. No mesmo momento em que a recém-nascida abriu os olhos anunciando a sua chegada ao mundo, a progenitora sorriu-lhe e fechou os dela, para sempre.

Naquele mesmo dia, a tia de Blimunda, inscreveu, com tinta de sangue, numa página invisível da vida, a ligação parental de ambos os nomes: «Blimunda, filha de Blimundo, o homem da cabaça na testa». Esta página invisível, manchada de vermelho carmim, ficou eternamente impressa na memória de Blimunda.

Uma cabaça! Um homem com a imagem de uma cabaça na testa! Insólito? Sim, talvez, mas não para Blimunda, pois, também, ela a transportava destacada como cor de vergonha, pelo menos, ali, naquela aldeia.

Blimunda mudou, então, de lugar. Casou e uma linda e inteligente criança homem nasceu do seu útero.

Um dia, o miúdo quis saber que «desenho» era aquele que a mãe tinha na testa. Revivendo um passado que não escolhera, pela primeira e única vez, Hipólito viu desprenderem-se relâmpagos daqueles olhos antecedendo os trovões lançados pela boca da mãe.

Não lhe foi difícil perceber que se defendia, amedrontando e que não permitiria, nunca mais, a pergunta.

E foi por isso que nem vacilou quando, numa ventosa manhã, uma folha de papel se colou ao seu rosto. «Descolou-a», observou-a e deu de caras com letras gordas que antecediam uma fotografia de um homem cuja fronte detinha uma marca bem sua conhecida. «Blimundo procura filha para ajuda na doença.», leu.

Tudo era por demais evidente. Hipólito, calmamente, esfumou em pedacinhos o papel e, num bailado leve de fragmentos brancos rodopiando pelo ar, vingava um pesado passado negro que aquela mãe, raçuda e forte, nunca na vida escolhera.